Opinião|Fernanda Young: Documentário mostra escritora ‘labiríntica’ e livro póstumo traz romances inéditos

Lançado este ano e já disponível no Globoplay, ‘Fernanda Young – Foge-me ao Controle’, de Susanna Lira, coloca em primeiro plano a atriz, roteirista e escritora morta aos 49 anos; ao mesmo tempo, dois romances póstumos chegam às livrarias esta semana no volume ‘Chatices do Amor’

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Guerrilheiras, e uma futura presidenta, sambistas, mães em defesa de seus filhos, as mulheres são sempre as personagens preferenciais no cinema de Susanna Lira. Sozinha, ou em parceria, em filmes como Mataram Nossos Filhos, Damas do Samba, Torre das Donzelas, Nada Sobre Meu Pai – a busca pelo pai guerrilheiro colombiano que nunca conheceu -, Susanna traça perfis, mas até ao filmar individualidades ela está pensando no coletivo. Retrata pessoas para abordar as grandes questões da sociedade. Não é diferente com o documentário Fernanda Young – Foge-me ao Controle, já disponível no Globoplay.

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Lançado no festival É Tudo Verdade deste ano, em abril, recebeu o prêmio de montagem. Foi o melhor filme no Festival de Paraty. Foram três anos de intenso trabalho para dar conta de uma figura que, embora conhecidíssima, Susanna revela por um novo ângulo. Fernanda Young (1970-2019) escreveu livros, programas de TV, ganhou visibilidade com suas performances e provocações. Aliás, dois romances inéditos deixados pela escritora chegaram às livrarias em outubro no livro Chatices do Amor (Record).

O volume reúne O Piano Está Aberto e O Livro. O primeiro aborda temas como amor e depressão e é contado sob a perspectiva de Anna, uma personagem introspectiva que encontra na música um meio de expressar sua tristeza. Já O Livro reúne os derradeiros escritos de Fernanda Young, fruto de um acordo singular com sua analista, que estipulava a produção de novos textos como condição para o retorno às sessões de terapia. Ambas as obras foram publicadas exatamente como deixadas pela autora.

Imagem de 'Fernanda Young — Foge-me ao Controle', filme de Susanna Lira Foto: Divulgação/GNT

O filme

Fernanda Young não era uma unanimidade. Fazia o gênero ame-a ou deixe-a. A própria Fernanda retribuía. Considerava-se injustiçada. Por meio de uma mulher, Susanna está retratando quantas mulheres? De cara, Fernanda expõe sua mágoa. Desde criança, sempre quis ser escritora. Escreveu todos aqueles livros, 15! Apesar disso, nunca recebeu reconhecimento da crítica, da intelectualidade. O preconceito está no centro da questão. Outras personagens de Susanna já tiveram de encarar o mesmo problema.

No poema Às Vezes Sinto Vontade de Faltar com a Verdade, Fernanda expõe sua revolta, mas afirma que gosta de ser lambida pela coragem. Conclui que o melhor mesmo é encarar a realidade, e é isso que também gosta de fazer a diretora. Susanna leu muito – livros, poemas, entrevistas -, assistiu a muitas horas de material gravado. Concluiu que não era o caso de adotar o formato chamado de cabeças falantes. Ninguém dá seu depoimento – como Fernanda era maravilhosa, ou irritante. Maria Ribeiro faz a locução, dando sua voz à própria artista em seus desabafos. A Fernanda do filme é uma cabeça pensante, e um corpo que não teme a exposição. Coloca-se nua frente à câmera. Veste-se de noiva para desmistificar a própria imagem.

Complexa, labiríntica – é assim que Susanna a define. “Seus temas recorrentes são o tempo, o amor, a memória, a morte, e são os mesmos que me atraem.” Tudo a levava a Fernanda Young. O próprio formato lhe foi sugerido pelo que leu, viu e descobriu sobre sua personagem. É um documentário ensaístico, com um tanto – muito? – de ficção em sua estrutura. Susanna estudou na mesma escola de Fernanda, mas não pertenciam à mesma turma. Sabia quem ela era, mas não chegaram a se conhecer. Esse conhecimento veio por meio da obra.

“Ela deixou muito material, falava de si, da condição da mulher. Quando mergulhamos na sua obra percebemos que tem consistência. Não estávamos preparados para aquela figura. Precisamos de tempo para assimilá-la.” E Susanna aposta – “Fernanda vai ficar mítica.” Prova disso é a acolhida que o filme recebeu. “São muitas as manifestações de pessoas que admitem não saber que Fernanda era tudo isso. E as que já sabiam ficam felizes com o reencontro. Esse é o meu filme, o meu recorte, mas tenho a impressão de que ainda virão muitos trabalhos sobre ela.”

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O recorte de Susanna privilegia a escritora. O parceiro de arte e vida, Alexandre Machado, que co-escreveu com ela Os Normais e Shippados quase não aparece. Machado, com mais idade, sempre identificou no caos feminino a fonte de energia, e Fernanda era a própria energia. Ele deu todo apoio à diretora, jamais interferindo no projeto. Aos olhos do público, e claro, na produção televisiva, formavam uma dupla dinâmica. Um certo feminismo tenta transformar hoje o homem em inimigo. Não era o caso de Fernanda, nem de Susanna. “Identificamos o que é preciso criticar, e mudar, acreditamos na diversidade, mas o homem, na vida da Fernanda, como na minha, é companheiro de lutas.” Não por acaso, ela abriu uma brecha em suas mulheres para retratar, por exemplo, Mussum, no doc Um Filme do Cacildis.

A escritora Fernanda Young, morta em 2019, posa ao lado de exemplares de 'Pós-F', livro que lhe rendeu um prêmio Jabuti póstumo. Foto: Silvana Garzaro/Estadão

Fernanda morreu em 2019, aos 49 anos. Teve uma crise de asma, sofreu uma parada cardíaca num sítio em Gonçalves, no interior de Minas. Não chegou a ter o atendimento de que necessitava. Susanna poderia ter reconstituído o opus final. Prefere lembrar que a vida toda Fernanda brigou pelo reconhecimento como escritora. Seu único prêmio, e não deixa de ser uma trágica ironia, só veio após sua morte. Pós-F: Para Além do Masculino e do Feminino ganhou o Jabuti de crônica três meses depois da partida de Fernanda.

Opinião por Luiz Carlos Merten
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