BERLIM – Martin Scorsese tinha 10 anos quando viu Pather Panchali, o primeiro filme da Trilogia de Apu, de Satyajit Ray. Foi na TV, e o filme era dublado, com intervalos para comerciais. Ele ficou fascinado.
“Era como se, de repente, as figuras de fundo nas produções de Hollywood ganhassem vida no primeiro plano. Descobri um outro mundo, uma outra cultura”. Ocorreu o mesmo com Kenji Mizoguchi, que também viu o filme na TV, dublado e com intervalos para comerciais, e com Akira Kurosawa.
“Mas O Rio, de Jean Renoir, vi no cinema, levado por meu pai”. Scorsese está aqui na Berlinale para dois dias de intensa atividade. Na tarde de terça, 20, deu uma coletiva e, à noite, foi homenageado a, de carreira, no Palast de Berlim.
A cerimônia foi seguida pela apresentação de Os Infiltrados, pelo qual recebeu o Oscar. Nesta quarta, Scorsese dará uma master class para jovens, no campus da seção Berlinale Talents. A coletiva foi conduzida pelo diretor artístico que se despede da Berlinale, Carlo Chatrian, e pelo presidente da Cinemateca de Berlim. Ambos destacaram a importância do homenageado, não apenas como diretor e autor, mas também pelo trabalho à frente da World Cinema Foundation, que tem sido responsável pela preservação e conservação de filmes de todo o mundo.
“Senhor Scorsese, o senhor virou sinônimo de amor pelo cinema. Qual a importância dos festivais?”. A primeira pergunta não poderia ter sido mais oportuna. Scorsese veio pela primeira vez a Berlim em 1981 – há 43 anos – para mostrar Touro Indomável, pelo qual Robert De Niro ganhou o Oscar de melhor ator. Na época, já tinha no currículo a Palma de Ouro que recebeu, em Cannes, por Motorista de Táxi.
“Os festivais são muito importantes e, mais que isso, necessários como momentos de encontro e descoberta. No mundo global, alargam fronteiras, celebram a diversidade. Às vezes, você vê um filme num festival e, 30 anos depois, revê e é outro filme. Não foi o filme que mudou. Foi você, seu olhar. Os filmes mudam com a gente”, respondeu
Quando jovem, ele tinha amigos como Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, George Lucas, Paul Schrader. Eles aprenderam a amar os filmes antes mesmo de conhecê-los. “Existe a fama, a mística. Sabia tudo sobre os filmes de Michael Powell e Emeric Pressburger, e, quando vi Sapatinhos Vermelhos, foi o encantamento. Tenho muito orgulho de ter participado da restauração desse filme”, disse Scorsese.
Nos anos 1960, quando John Cassavetes começou a fazer seus filmes independentes, em Nova York, era muito difícil assistir a filmes antigos. “O cinema silencioso quase não existia. Cópias difíceis de encontrar, filmes arranhados, imagens danificadas. Hoje, quase tudo está ao alcance das novas gerações.” É o que ressalta a necessidade da crítica.
“Comparo a um bebê que aprende a caminhar. Nessa quantidade muito grande de ofertas para se ver, conhecer, o espectador, principalmente jovem, precisa de alguém para orientar seus passos e ajudar na seleção”.
Um jornalista jovem pediu licença, 30 segundos apenas. Improvisou um diálogo de Os Infiltrados. Foi o que bastou para que Scorsese contasse que o filme teve muitas cenas improvisadas, mas não menos do que o recente ainos da Lua das Flores. Foi a única referência ao filme pelo qual concorre ao Oscar deste ano, com dez indicações. “A improvisação muitas vezes faz parte do processo”, explicou. Os 30 segundos renderam. “Senhor Scorsese, quais os 30 segundos mais importantes de sua vida?”, indagou outro jornalista.
A resposta foi inesperada. Depois de alguma vacilação – “Da minha vida ou dos filmes?” – ele lembrou um comercial que fez nos anos 1980 para Giorgio Armani. Um casal de jovens se descobrindo através da linguagem. Como contar isso em um tempo tão curto? Scorsese matou a charada em três shots.
“Não é por ser uma obra de propaganda que não pode ser criativa”. Antes, ao falar sobre a crítica, tão necessária, lembrou que ela vive à sombra de quem cria. O teórico francês André Bazin talvez discordasse. Para ele, ao reconstituir no inconsciente o filme que viu – e ao formular sua crítica, escrevendo sobre ele - o crítico faz o próprio filme.
Criado na religião católica – ia ser padre - Scorsese visitou o Papa Francisco no Vaticano. Desde então, a ideia de um filme sobre ele está na pauta. A religiosidade o atrai. Fez uma filme sobre o Dalai Lama, Kundun, filmou a vida de Cristo, A Última Tentação, e seguiu a danação de missionários católicos no Japão, em O Silêncio. De todos os seus personagens, o pugilista Jake LaMotta, de Touro Indomável, pode muito bem ser o que mais busca a transcendência.
“Como será esse possível filme sobre Francisco?”, perguntou outro jornalista. “Ainda não sei, mas um dia vou acordar e terei descoberto. Poderemos voltar a falar quando fizer o tour de divulgação do filme”.
Na verdade, houve outra referência a Assassinos da Lua das Flores. Scorsese estava no meio do nada em Oklahoma, visitando locações. “Cheguei a essa casa pequena, acolhedora, de uma artista plástica. Na despedida, ela perguntou se seu filho, um garoto de 20 anos, podia fazer uma selfie. Ele sabia quem eu era, meu trabalho como preservador e distribuidor. Arrisquei, perguntando se ele conhecia Cinzas e Diamantes? Sim”.
O clássico do polonês Andrzej Wajda é outro dos filmes da vida de Scorsese, como certos clássicos do neo-realismo e do cinema francês. Mas ele não cita a nouvelle vague – “Marcel Carné, René Clair.”
“Um homem, um artista, que ama tanto os clássicos, como vê os novos talentos?”, questionou outro jornalista. “Procuro acompanhá-los, há muita gente que me interessa”. Sobre como avalia o próprio cinema, ele respondeu:
“Quando jovem eu, talvez, sonhasse mais, tivesse mais ambição. Hoje, quando filmo uma cena, me preocupo mais com a posição dos atores, da câmera. Onde vou cortar? Quando se faz muitos filmes há uma tendência a repetir-se. Tento evitar isso, continuo buscando o frescor de cada cena”. Ele ainda opinou:
“Não creio que o cinema esteja morrendo, nem que vá morrer. Está é mudando. A mudança faz parte. O importante são as vozes individuais. Tem gente que se expressa no Tiktok, em um filme de duas ou de quatro horas. O importante é a expressão que impulsiona a gente a fazer arte”.
Uma pergunta sobre a mãe, que foi atriz em seus primeiros filmes. A jornalista não guardava uma impressão muito boa. O que a mãe dele fazia de melhor? “A lasanha.” E depois – “Mas ela foi grande, uma grande mulher.” Com certeza. Ajudou a forjar esse filho tão amado por cinéfilos em todo o mundo.
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A sala da coletiva estava lotada. Invertendo a temporalidade do evento, o final do texto é com uma das primeiras perguntas que lhe foram feitas. “Senhor Scorsese, como o senhor se definiria em uma palavra?” E ele disse: “Mistery (mistério)”. O mistério de Scorsese assombra e maravilha os cinéfilos no belíssimo crítica.
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