Considerado o mais político dos grandes festivais internacionais de cinema, Berlim – a Berlinale – vive um momento conturbado em 2024, quando se realiza a sua 74ª edição. Houve um prenúncio de crise no ano passado, quando a ministra alemã da Cultura, Claudia Roth, anunciou uma mudança de rumo. Berlim é o festival que mais vende ingressos no mundo, agregando a população por meio de sessões legendadas dos filmes da competição e das mostras paralelas.
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A ministra fez saber que queria uma linha de filmes que o público estivesse realmente interessado em ver e que a curadoria fosse trabalho de uma só pessoa. Carlo Chatrian, que assinava a seleção com Mariette Rissenbeek, anunciou sua demissão, uma lista de apoio circulou e um dos primeiros a assiná-la foi Martin Scorsese.
Uma nova curadoria já foi anunciada e deve ser empossada em abril. A norte-americana Tricia Tuttle assumirá com a bandeira de enxugar a seleção e reduzir custos. Se somar a isso uma seleção mais popular, a Berlinale terá uma mudança e tanto de perfil – em 2025.
Flerte com Hollywood
O protesto de Scorsese não prejudicou sua posição privilegiada. Ele será o homenageado com o Urso de Ouro de carreira deste ano, com direito a retrospectiva e aula magna.
O festival fecha um ciclo e abre outro. Começa nesta quinta, 15, com pompa e circunstância, estendendo o tapete vermelho para Cillian Murphy, que concorre ao Oscar de ator por seu papel no filme recordista de indicações – 13 –, Oppenheimer, de Christopher Nolan.
O Festival de Berlim sempre flertou com Hollywood e o Oscar. O próprio Scorsese concorre ao prêmio da Academia, em março, com Assassinos da Lua das Flores, indicado para 11 estatuetas.
Já Murphy volta à Irlanda, onde nasceu, para cavoucar uma ferida nacional. Durante quase 200 anos, mulheres de moral considerada duvidosa – mães solteiras, adúlteras, prostitutas – foram confinadas em instituições católicas conhecidas como Magdalene Laundries, onde trabalhavam em regime escravocrata. Tim Mielants conta essa história terrível em Small Things Like These, em que Murphy faz um pai que procura a filha – e o neto – e descobre as condições desumanas em que ela vive.
Murphy foi ator de Ken Loach em Ventos da Liberdade, com o qual o diretor recebeu sua primeira Palma de Ouro, em 2006. Outro ator de Loach, Peter Mullan – protagonista de Meu Nome É Joe –, venceu o Leão de Ouro em Veneza, em 2002, com The Magdalene Sisters, que contava a mesma história de Small Things, com outro recorte. E ainda houve um terceiro filme sobre o assunto: Judi Dench foi indicada para o Oscar por Filomena, de Stephen Frears, em 2013. A busca de uma mãe pelo filho que deu em adoção nas tais lavanderias.
Miúras na competição
Com um início que promete ser de impacto, a Berlinale de 2024, que termina no dia 25 de fevereiro, traz 20 longas na competição. Dois são primeiras obras e 19, estreias mundiais. Sendo a última seleção da dupla Chatrian/Rissenbeeck, a grande questão é o que Berlim mostra este ano e talvez deixe de ter espaço no futuro?
Nomes conhecidos garantem o brilho da seleção, os novos filmes de Abderrahmane Sissako (Black Tea), Bruno Dumont (L’Empire), Mati Diop (Dahomey), Olivier Assayas (Hors du Temps) e Hong Sangsoo (A Traveller’s Needs). Com o longa da dupla Mielants/Murphy, representam pouco mais de um quarto da seleção, seis num total de 20. E 14 títulos são de estreantes ou autores que começam a circular em grandes festivais.
Para um evento que quer dialogar com seu público, a seleção de 2024 envolve um componente de risco. Há muitos filmes miúras na competição. Talvez sejam a bomba retardada que Chatrian e Rissenbeek estão deixando como legado. Sendo o último trabalho da dupla, a grande questão é o que Berlim mostra este ano e talvez deixe de ter espaço no futuro?
Uma dessas obras que concorrem ao Urso de Ouro já garantiu a polêmica – My Favourite Cake, da dupla iraniana Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, foi desqualificado no país de origem. O material do filme e os passaportes dos diretores foram confiscados, impedindo-os de deixar o país.
Impossível prever quais filmes presentes este ano talvez não estariam no ano que vem. Mas o critério da qualidade continua sólido, e valendo. E Berlim ainda tem todas as demais seções – Panorama, Forum, Forum Extendido, Generation.
O Brasil na Berlinale
O Brasil participa da seleção oficial de 2024, na mostra Berlinale Encounters, com o novo filme de Juliana Rojas, Cidade: Campo. Em entrevista, ela conta que é um privilégio integrar a seção que contempla obras mais radicais, marcadas pelo experimentalismo de linguagem. O filme conta histórias cruzadas de migrações.
Em 2020, Cidade: Campo foi selecionado, enquanto projeto, na seção Filmes do Depois de Amanhã, no Festival de Locarno. A produção foi impactada pela covid-19 e somente agora o filme foi selecionado para Berlim. Juliana destaca a importância de ter um filme em Berlim após os anos do governo de Jair Bolsonaro.
“Ele tratava o cinema como inimigo. Teremos uma expressiva participação brasileira no mercado de Berlim. Quremos mostrar de novo do que somos capazes. Meu filme aborda a migração da cidade para o campo, e do campo para a cidade. Foi rodado em Mato Grosso do Sul, com base em narrativas familiares, mas também é fruto de muita pesquisa para colocar na tela a realidade brasileira.”
Na recente Mostra de Tiradentes um fórum para discutir produção e mercado emitiu uma Carta. O setor precisa de investimento público, mas a parceria internacional, a exposição e a troca de informações – e recursos –, são necessárias.
Pelo segundo ano consecutivo, o júri da competição será presidido por uma atriz, Lupita Nyong’O. No ano passado, Kristen Stewart, da saga Crepúsculo, garantiu a cobertura midiática, levando o tapete vermelho de Berlim a um patamar sem precedentes.
E ela foi uma presidente ousada. Premiou o documentário Sur L’ Adamant, de Nicholas Phillibert, sobre doenças mentais. O próprio Phillibert não acreditou quando o anúncio foi feito. Urso de Ouro! Este ano, Kristen volta à Berlinale como atriz no thriller queer Love Lies Bleeding, de Rose Grass, que fez sensação em Sundance, em janeiro. O filme passa fora da competição. Conta a história de uma mulher louca de desejo por uma fisiculturista bissexual.
A par do talento, Lupita se destaca pela militância em questões identitárias. Há muita expectativa pelo que poderão ser suas escolhas no júri da Berlinale.
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