Havia a expectativa, no Festival de Berlim do ano passado, que o júri premiasse o filme alemão 'Kreuzweg' - literalmente, Via-Crúcis. 'Shame on you, Mr. Schamus'. O júri presidido pelo produtor norte-americano James Schamus, dos filmes de Ang Lee, preferiu premiar o chinês 'Black Coal, Thin Ice', de Diao Yinan, e era o mais estiloso (e fraco) de todos os concorrentes da China. Com o título de '14 Estações de Maria', 'Kreuzweg' estreou ontem nos cinemas brasileiros. Não é fácil, mas é admirável.
Narrado em 14 planos - todos eles rigorosos planos sequências -, o filme transforma em estações da Cruz a história de Maria. É uma garota de 14 anos. A família é religiosa e conservadora, numa palavra - fundamentalista. E Maria vive dividida. Em casa, aceita seguir os fundamentos mais rigorosos e até obscurantistas da religião em troca da promessa de que um milagre poderá reverter o quadro da doença do irmão mais novo, que não consegue falar. Na escola, ela é uma garota como as outras. Chega até a apaixonar-se por um colega, mas como conciliar o inconciliável?
Para criticar o fundamentalismo que virou uma praga no mundo atual, o diretor Dietrich Brüggemann fez um filme de uma beleza de cortar o fôlego. Enquadramento, iluminação, movimentos de câmera (apenas três, na maior parte do tempo ela é estática), tudo impressiona em 'Kreuzweg'. Quem conhece as estações da Via-Crúcis talvez antecipe os momentos da agonia de Maria, comparados ao sofrimento do próprio Cristo, e nesta Sexta-Feira Santa, toda essa dor com certeza será lembrada pelos fiéis. Jesus É Condenado à Morte, Jesus Carrega Sua Cruz, Jesus Cai pela Primeira Vez etc. Cada etapa tem seu equivalente na Via-Crúcis de Maria. A cena em que Jesus cai pela primeira vez é a do seu encontro com o garoto, na biblioteca da escola - a tentação. Você sabe aonde ou como essa história termina.
O que faz a diferença é a interpretação dos atores - e dos fatos. Lea Van Acken, que faz Maria, é doce e vive o sacrifício com humildade, sem jamais estirar a corda do sentimentalismo. Sua mãe, Franzisca Weisz, chega a ser assustadora. Para resgatar um filho, ela sacrifica a outra, e o faz convencida, pela fé cega, da sinceridade e dedicação de seus atos. Da mesma forma, age o padre Weber/Florian Stetter, cuja congregação (fictícia) não segue a liturgia do concílio Vaticano II porque foi sob a invocação de Satanás, segundo ele, que a Igreja foi modernizada. Stetter, só para lembrar, é o Schiller de Duas Irmãs, Uma Paixão, de Dominik Graf, que ainda está em cartaz em São Paulo (e integrou a competição de Berlim no ano passado).
Em Berlim, o diretor Brüggemann invocou Robert Bresson, Carl Theodor Dreyer e Yasujiro Ozu, os três mestres da transcendência, como não se cansa de nos lembrar o roteirista e diretor Paul Schrader. Brüggemann não ousou comparar seu filme aos desses grandes autores, mas disse que foram referências, como a grande pintura flamenga, porque vivemos hoje um embate entre forças do obscurantismo e da luz. “Nunca foi minha intenção assustar o público, mas também não quis facilitar sua vida, criando um filme palatável. O que vemos todo dia no mundo é a força do fundamentalismo virando horror. Em nome de Deus, praticam-se coisas ignóbeis, dignas do Diabo. Um mundo sem tolerância, sem compaixão, nada pode ser mais cruel.”
E o diretor, que escreveu o roteiro com sua irmã, Anna, acrescenta - “Nosso filme não é contra a religião. Seria absurdo negar que ela oferece conforto em momentos de agonia, mas o problema é quando exige sacrifícios sobre-humanos, que impedem o crescimento de adolescentes, como nesse caso.” A forma particular do filme foi sendo gestada em seu imaginário ‘desde sempre’. “Meu primeiro filme, ainda na escola de cinema, já era um exercício de tomadas únicas. Sempre gostei desses planos longos, porque dão liberdade aos atores e, ao mesmo tempo, exigem rigoroso controle do diretor e do fotógrafo. Alexander Sass fez um trabalho notável com a luz.”
Havia o desejo de contar uma história em planos sequências e, ao mesmo tempo, havia no ar toda essa discussão sobre religião e fundamentalismo. “As estações da Cruz somam 15 etapas, sendo a última a Ressurreição. Retire essa e temos 14 estações, porque, afinal, estamos falando de humanos, não de Cristo. Procuramos, Anna (a irmã roteirista) e eu, criar uma personagem cuja história se adaptasse à Via-Crúcis.” O maior desafio era o texto que os atores precisavam decorar. “É um filme muito falado. Na primeira estação, o padre fala sem parar. Não foi fácil assimilar aquele texto. E, ao contrário do que muitos podem pensar, nunca fizemos uma só tomada. Os próprios atores pediam para repetir. Algumas estações foram filmadas 20 vezes, outras, 15. Fomos todos ao limite, e esperamos que o público vá também. Mas não estaríamos exigindo, digamos, esse sacrifício se não achássemos que vale a pena.”
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