Renata Pinheiro é a primeira a admitir que seu filme em dupla com Sérgio Oliveira – Açúcar –, é diferente de suas experiências solo. Amor, Plástico e Barulho e agora Carro Rei, mesmo coescrito pelo amigo, têm outra pegada. Com Carro Rei, ela venceu o Festival de Gramado do ano passado. Ainda era recente a premiação da francesa Julia Ducournau com a Palma de Ouro e Carro Rei foi logo rotulado como o Titane brasileiro. Pura coincidência. Renata já vinha trabalhando nesse projeto desde 2014, não fazia a menor ideia de que haveria um Titane no meio do caminho, perdão, da estrada. O filme, em cartaz nos cinemas, é sobre o Brasil, o caos brasileiro.
Falar sobre carro ela sempre quis. Os carros dominam as ruas, as estradas, o espaço urbano é formatado mais para eles do que para as pessoas. Um dia, passeando com o amigo Sérgio pelo Recife, ela observou: “Os carros são os verdadeiros donos da cidade”. A observação poderia ter-se perdido, mas, com Sérgio e Leo Pyrata, Renata vislumbrou um filme. Começou a desenvolver o roteiro. Ganhou o primeiro edital em 2015 – há sete anos. Nunca se preocupou em fazer um roteiro “limpo”, só o caos pode expressar o caos.
No início, o carro não falava, isso veio depois. Já o ator, ela sempre soube que teria de ser Matheus Nachtergaele. Em entrevista ao Estadão, no ano passado, falando sobre o filme que deveria ir para Gramado, Matheus já havia cantado a bola. “É um filme muito interessante, de uma diretora talentosa. Vai acontecer, você vai ver.”
Para uma diretora/autora interessada em retratar o caos, Renata pode parecer contraditória. Conversa com o Estadão, por Zoom, do interior de Pernambuco. Está em Catimbau, na parte externa de uma casa simples. Ela desloca o aparelho para que o repórter possa ver a extensão deserta. “Vou fazer meu próximo filme aqui, uma história de cangaceiras vingativas adaptada de um cartunista da Paraíba.” Antes deve fazer outro filme, ambientado no Recife. Projetos não faltam, mas agora é hora de falar de Carro Rei. Para contar a história do carro, Renata conta a de Uno, que tem o dom. Comunica-se com o carro. Quando uma nova lei proíbe a circulação de carros antigos, ele recorre ao tio mecânico para incrementá-lo. Zé Macaco, o personagem de Matheus, é inspirado em alguém que Renata conheceu. O carro antigo vira novo. Fala, faz sexo, faz planos que interferem na vida das pessoas.
Em Roterdã, onde o filme teve sua estreia internacional, o elogio já começou pelo catálogo do festival. “Falava maravilhas.” Carro Rei já desembarcou no Brasil com o rótulo colado: pop! Titane nacional! Antes de ser diretora, Renata foi diretora de arte e cenógrafa. Amor, Plástico e Barulho já dava conta de sua preocupação com o visual, ainda mais intensa em Carro Rei. “O filme nasceu com a vontade de tirar o carro do seu domínio, a cidade grande, e levá-lo para um Brasil interiorano, menos explorado. Quando se faz isso, o pacote já vem completo. A paisagem, a arquitetura, as pessoas, tudo muda.”
A grande virada aconteceu em 2016. “Veio uma onda mundial de usar a tecnologia com má-fé, uma bomba de fake news que foi interferindo na vida dos países e das pessoas crédulas. O filme virou o que é. Um espelho para retratar falsos discursos e promessas. As pessoas embarcaram no que achavam que era uma coisa e terminaram envolvidas por esse caos. Fascismo, totalitarismo. Por mais irreal e até divertido que seja ver um carro falar, é um filme que faz pensar. Em Roterdã, em Gramado, o público entrou no clima.”
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