As páginas de um grande evangelho, jazendo sobre o caixão de madeira sem adornos, flutuavam ao sabor da brisa. Cardeais vestindo vermelho e bispos vestindo roxo observavam de perto, e milhões de enlutados encheram a Praça de São Pedro e as ruas vizinhas no vasto espetáculo que foi o funeral do papa João Paulo II em 2005.
A imagem dessas páginas, vistas de cima, a partir da colunata da praça, está repleta de simbolismo: o evangelho agitado pelo vento representava o Espírito Santo. Ao menos foi o que os observadores aprenderam enquanto assistiam ao cerimonial e ao conclave que se seguiria.
Imagens desse momento são mostradas na comédia dramática Dois Papas, que entrou em cartaz no serviço de streaming da Netflix no dia 20 de dezembro. O filme retrata a eleição do sucessor de João Paulo, Bento XVI; a chocante renúncia de Bento; e a eleição do pontífice atual, Francisco.
No filme, o cardeal alemão Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins) é eleito papa Bento XVI e, a partir daí, está criado o clima para uma dupla dinâmica no pontificado – uma série de conversas hipotéticas entre Bento e o cardeal Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce), que se tornará seu sucessor, Francisco.
É delicioso escutar os dois formidáveis teólogos debatendo perspectivas diferentes do catolicismo, reconhecendo dúvidas espirituais, fazendo brincadeiras com os Beatles, buscando a absolvição um do outro, para finalmente tomar uma cerveja juntos, dois velhos papas assistindo a uma partida de futebol no sofá.
O roteirista Anthony McCarten (cujo currículo inclui Darkest Hour, contando a história de Winston Churchill), disse ter criado seu roteiro a partir de pesquisas com fontes secundárias, arquivos e entrevistas. “O potencial que senti nessa história era o de um debate, quase uma disputa talmúdica, entre uma posição progressista e outra conservadora", disse ele. “Era algo relevante para o debate presente da sociedade.”
Cerca de um quarto do diálogo papal foi tirado diretamente de discursos ou textos dos próprios pontífices, disse ele. Os debates começam enquanto eles caminham pelos jardins da residência papal de verão, em Castel Gandolfo. Bergoglio viajou a Roma para pressionar Bento a aceitar seu desejo de renunciar ao posto de arcebispo de Buenos Aires.
McCarten faz um bom trabalho no retrato telegráfico das posições políticas deles – o tradicionalista, protetor da doutrina e introspectivo contra o flexível, piedoso e aberto ao mundo moderno –, encapsulando o debate que prossegue na igreja.
Bento critica o cardeal, expressando sua irritação com declarações aparentemente simpáticas aos padres casados (“distorceram minhas palavras”, responde o personagem de Bergoglio) e à homossexualidade (“tiraram minhas palavras do contexto”), e com a comunhão oferecida pelo cardeal aos católicos divorciados (que ele não nega) e sua popularidade entre a gente simples.
Bergoglio responde então com uma crítica precisa do papado de Bento: “Passamos os três anos mais recentes repreendendo quem discordasse de nosso posicionamento em relação ao divórcio, ao planejamento familiar, ao homossexualismo, enquanto o planeta era devastado e a desigualdade crescia como um câncer”. Ele prossegue – “O tempo todo, o verdadeiro perigo estava dentro, conosco”. Esse perigo, diz ele, seria o conhecimento da hierarquia da igreja quanto aos abusos infantis cometidos pelo clero, e seu fracasso na proteção dessas crianças.
Publicamente, Bento disse que a falta de força “física e mental” o teria levado a crer que não poderia mais arcar com as responsabilidades do papado. O filme sugere que ele teve uma crise de fé por causa de sua resposta inadequada ao escândalo de abuso sexual. Aponta também que o fardo de lidar com a corrupção no Vaticano seria uma das causas.
Mas talvez McCarten tenha retratado uma verdade mais profunda: ele acreditaria que o centro de gravidade da igreja deveria mudar, e a gravidade o estaria atraindo para a América Latina, ou ao menos para fora da Europa.
O filme termina com os dois papas assistindo à final da Copa do Mundo entre Alemanha e Argentina em 2014. É um quadro harmonioso que vai agradar aos propagandistas do Vaticano. O mesmo vale para as montagens de Francisco como defensor dos pobres e oprimidos.
Mas essa é apenas metade da história. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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