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Filme sobre Ângela Diniz se equivoca ao misturar feminicídio e apelo erótico; leia crítica

‘Ângela’, estrelado por Isis Valverde, passa longe de honrar a liberdade da protagonista. Na época, caso foi tratado de maneira misógina tanto pela mídia quanto pela justiça, mas filme prefere não tratar do assunto como poderia

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Por Bruno Carmelo

No papel, a ideia certamente soava muito promissora. O retrato cinematográfico de Ângela Diniz, importante figura pública assassinada em 1976, permitiria discutir o avanço da proteção às mulheres e o reconhecimento do machismo estrutural no país. Neste episódio, o companheiro Doca Street alegou “legítima defesa da honra” após executar a socialite. Inicialmente, o argumento o retirou da prisão. A sociedade melhorou desde então?

Isis Valverde dá vida a Ângela Diniz no filme 'Ângela'. Foto: Aline Arruda/Divulgação

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Os criadores decidem se focar em um aspecto preciso da vida da protagonista: sua sexualidade. Sim, o fato de ser uma mulher livre para a época foi fundamental para tantos ataques na mídia e na justiça. No entanto, o apetite sexual consiste na única ferramenta de roteiro para defini-la. O importante episódio de 1974, quando Diniz foi acusada de sequestrar a própria filha, é citado por alto. A mulher nunca parece se importar, de fato, com os filhos, com quem conversa pouco, por iniciativa da avó das crianças.

Mas sabemos que Ângela, na ficção, adora fazer sexo com os parceiros. Há inúmeras cenas íntimas envolvendo Ísis Valverde e Gabriel Braga Nunes, ou então, com Gustavo Machado. Bianca Bin, no papel da melhor amiga, recebe desenvolvimento ínfimo, e mesmo assim, tem o direito à sua própria cena de sexo com um garoto mais novo. Os autores se estimam radicais e corajosos por revelarem o prazer sexual destas mulheres.

Aí começam os problemas do longa-metragem. Primeiro, assumir a libido feminina não significa reduzir a mulher ao desejo por sexo. A Ângela fictícia se traduz em mãe negligente e companheira volátil porque se dedica apenas a si mesma. Ao invés de um símbolo de liberdade, torna-se uma figura hedonista e arrogante (vide o contato com a empregada doméstica), que minimiza sua responsabilidade perante os outros para priorizar vontades próprias.

Em segundo lugar, a imagem do sexo está distante de um naturalismo. Pelo contrário, reveste-se de fetiches, com um imaginário softcore estranho ao cinema do século 21. Ângela se entrega à paixão diante de uma fogueira, em câmera lenta, junto a cortinas deslizantes, ao som de rock retrô. Busca-se espetacularizar o sexo para envolver o espectador no jogo de sedução. Mesmo quando já conhecemos o caráter perverso do companheiro, e autodestrutivo da heroína, ainda somos apresentados a cada encontro como algo desejável e desejante.

A sutileza passa longe da direção, que oferece planos de detalhe em facas afiadas durante brigas do casal, e revela gritos da mulher agredida no quarto, enquanto o casal de amigos senta pacificamente na mesa ao lado, e espera os barulhos acabarem para seguir com a refeição. A passividade do mundo ao redor se aproxima da paródia, conforme a violência adquire ares de fábula exemplar e de cautionary tale - está vendo o que pode acontecer a você, mulher comprometida, caso fique de papo com outros homens?

Em consequência, o discurso jamais honra a liberdade da protagonista, preferindo puni-la por meio de um fatalismo perverso. Ela será, da primeira à última cena, uma vítima. O filme demonstra menos interesse em entender Ângela Diniz, ou em discutir as circunstâncias da violência de gênero, do que em transformar sua morte em entretenimento levemente picante, com ares de true crime, seguindo as tendências da moda no audiovisual.

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Ora, seria eticamente indispensável efetuar um filme sobre 1976 com o olhar de 2023, fugindo à estética e à ideologia do “crime passional”. É possível ser fiel aos fatos, aos figurinos e cenários, e ainda imprimir sensibilidade e senso crítico dignos dos nossos tempos. Entretanto, o drama se contenta em explorar o aspecto bombástico do coquetel formado por sexo e morte envolvendo dois belos atores. Não é possível criticar a exploração machista da mídia da época através de uma abordagem igualmente sexista e propícia ao clickbait.

Se um elemento merece ser salvo neste caldeirão, ele corresponde à excelente atriz Alice Carvalho. Mesmo num papel ingrato, ela oferece uma composição muito digna, e alude ao imenso potencial que outros projetos, a exemplo da série Cangaço Novo, souberam aproveitar melhor.

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