Em alguns momentos, você até gostaria que a câmera fosse embora, para dar um pouco de privacidade a Peter Doherty, o vocalista da banda The Libertines (considerada a resposta britânica ao rock sujo do The Strokes, vindo de Nova York), enquanto ele vacila mais uma vez, deixa a sobriedade e transfere o veneno da seringa para dentro das próprias veias.
É cruel. Chocante, mesmo: alguém que chegou no topo, como o caso do ídolo do rock de garagem inglês Doherty, em completa ausência de controle sobre si. Pela lente de Katia deVidas, a esposa dele, o documentário Peter Doherty: Stranger in My Own Skin apresenta um ídolo nu, desmascarado apesar da própria genialidade. Uma pessoa quebrada. Extremamente humano.
A humanidade dos semideuses habitantes dos palcos é (possivelmente) o tema de todas as edições do Festival In-Edit Brasil (Festival Internacional do Documentário Musical), nesta 16ª edição, realizada entre os dias 12 a 23 de junho deste ano, por tratar de uma estirpe muito rara de seres humanos, os artistas da música. Neste ano, não é diferente.
Na edição de 2024, são 63 filmes em cartaz com exibições pela cidade de São Paulo. Os locais são CineSesc Cinemateca Brasileira, Spcine Olido, Spcine Paulo Emílio (CCSP), Cine Bijou, Cine Matilha e Cineclube Cortina. Além disso, o festival também chega às salas nas periferias no CEU Meninos, CEU Perus e CFC Cidade Tiradentes. O único que tem ingresso pago é o CineSesc, no valor de R$ 10.
O festival de cinema dedicado a documentários musicais é, além de queridinho dos fãs de boa música e parte fundamental do calendário cultural da cidade, um desconstrutor de vaidades.
A casca de um gênio
Não que sobrasse vaidade na carcaça de Doherty durante o processo que o limpou das drogas, a tempo de afugentar uma possibilidade de morte por overdose (o que não poupou a amiga do roqueiro e companheira de noitadas, Amy Winehouse, morta aos 27 anos). As casas de apostas inglesas, desalmadas, reuniam pessoas do mundo todo em um jogo cruel de adivinhação sobre a morte de Doherty.
Ninguém imaginava que o artista, que após ser preso ao roubar o próprio colega de The Libertines (Carl Barât, guitarrista e também vocalista), chegaria aos 30. Ele ultrapassou e muito (tem 45 anos, atualmente) e vem frequentemente ao Brasil, como atração de festivais como Lollapalooza e Popload Festival. Principalmente, ele adotou um nome “adulto”, com a letra R ao final do Pete: agora, ele responde por Peter.
A intimidade do The Black Keys
A dupla de blues rock da pequena cidade de Akron, Ohio, The Black Keys tem um objetivo claro ao se deixar filmar em This Is A Film About The Black Keys e, principalmente, expor intimidades, brigas, fragilidades e demônios reservados para os momentos de bastidores.
Formado pelo guitarrista Dan Auerbach e o baterista Patrick Carney, o grupo quer se reapresentar para uma geração que talvez tenha curtido algumas das músicas do álbum mais famoso deles, Brothers, lançado em 2010, quase quinze anos atrás. E se reposicionar no mercado depois de alguns álbuns de pouca repercussão, justamente agora, na entrada de mais um ciclo de turnê, com o lançamento do disco Ohio Players (2024).
A jogada de marketing também não tenha dado tanto certo - mesmo com essa tentativa de remodelar a imagem do duo, a nova turnê anunciada por Auerbach e Carney em arenas de mais de 15 mil lugares foi cancelada pela falta de procura de ingressos. “Nós fomos fod**os”, escreveu Carney, quando eles se desvincularam com a agência de empresariamento que trabalhava com eles desde 2021.
O ponto é que o The Black Keys sempre existiu fora da curva e, por um breve período, na virada da primeira década do novo século, entre 2010, com o lançamento do já citado Brothers, passando pelo igualmente premiado disco El Calmino (2011), eles alcançaram o topo com o mundo sob suas botas.
Antes disso, eram uma dupla de nicho, com público pequeno, prestes a desistir da carreira, após cinco discos idolatrados pelos poucos que o ouviram, mas ignorado pela maioria. Depois do período das vacas gordas, o duo viu o próprio carácter autodestrutivo colocar gasolina no que já era um material inflamável e a banda voltou a patamares menores - a nova turnê para 2024 deve ir para lugares intimistas e teatros para 3 mil pessoas.
Em This Is A Film About The Black Keys, a estrela é realmente a relação profissional, mas nem sempre tão amigável, entre os dois integrantes da banda. Separações, divórcios, álbuns solo gravados às escondidas... Dan Auerbach e Patrick Carney não poderiam ser mais diferentes e, mesmo assim, deram liga. Eles tinham tudo, estiveram no topo do mundo, mas estavam infelizes, solitários e miseravelmente cansados.
Um Stone favorito
Brian Jones esteve em um dos momentos mais importante da história do rock. Ele estava lá quando Mick Jagger e o guitarrista Keith Richards formaram os Rolling Stones, mais de cinco décadas atrás, em 1962.
Um dos mais fascinantes personagens do rock, Jones é o foco do documentário The Stones and Brian Jones, dirigido por Nick Broomfield, o mesmo de outros retratos icônicos e desnudos de nomes como Whitney Houston (Whitney: Can I Be Me, de 2017), do casal Kurt Cobain e Courtney Love (Kurt & Courtney, de 1998), dos rivais Tupac Shakur e Notorious B.I.G. (Biggie & Tupac, 2002), entre outros.
O longa - não autorizado, é importante frisar - é intenso por mexer em certas relações que a história preferiu esquecer, principalmente de rivalidade entre os integrantes da banda naqueles anos de formação.
Enquanto conta o início explosivo dos Stones, o documentário revisita a geração dourada que imaginou poder mudar o mundo com rebeldia, cabelos longos e uma revolução sexual. No centro disso, está a trágica história do guitarrista, expulso da banda em junho de 1969 e morto menos de um mês depois. Jones foi encontrado morto na piscina de casa aos 27 anos.
Jones, The Black Keys e Pete Doherty, cada um a sua maneira, enfrentaram com o estrelato como puderam. Não foram todos que saíram vivos dessa jornada. E nenhum restou inteiro.
Outros destaques internacionais e brasileiros
Deixando os heróis trágicos de lado, o In-Edit Brasil também oferece uma variada gama de documentários, entre nacionais e internacionais. Na mostra internacionais, também vale destacar Karen Carpenter: Starving For Perfection, Joan Baez: I Am A Noise, In Restless Dreams: The Music Of Paul Simon e Devo. Há ainda filmes sobre Simple Minds, Cyndi Lauper, Carlos Santana. O prato é cheio.
Na mostra nacional, destacam-se Black Future (Paulo Severo), Eu Sou o Rio, Black Rio! Black Power! (de Emílio Domingos), Luiz Melodia – No Coração Do Brasil (Alessandra Dorgan), Moacyr Luz, O Embaixador Dessa Cidade (de Tarsilla Alves), Na Terra de Marlboro (de Cavi Borges). Para conferir a programação completa, acesse o site oficial.
Peter Doherty: Stranger in My Own Skin
- Cinemateca Grande Otelo. Largo Sen. Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino. Dia 16, domingo, às 20h30. Entrada gratuita*.
- CineSesc. R. Augusta, 2075 - Cerqueira César. Dia 19, quarta, às 20h30. R$ 10.
- Cine Bijou. Praça Franklin Roosevelt, 172 - Consolação. Sia 22, sábado, às 20h30. Entrada gratuita*.
This is a Film About the Black Keys
- Spcine Olido. Av. São João, 473 - Centro Histórico. Dia 15, sábado, às 18h. Entrada gratuita*.
- Spcine Paulo Emílio. R. do Anfiteatro, 109 - Butantã. Dia 19, quarta-feira, às 19h. Entrada gratuita*.
The Stones and Brian Jones
- Cinemateca Externa. Largo Sen. Raul Cardoso, 207 - Vila Clementino. Sábado, dia 15h, às 20h. Entrada gratuita*.
- CineSesc. R. Augusta, 2075 - Cerqueira César. Dia 22, sábado, às 18h. R$ 10.
*Entrada sujeita a lotação do espaço.
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