‘Foi uma paixão’, diz diretor do documentário sobre o encontro tenso e mágico de Elis e Tom em disco

Roberto de Oliveira, que foi empresário da cantora, lança o documentário ‘Elis & Tom - Só Tinha Que Ser Com Você’, sobre álbum de 1974, que chega ao cinemas nesta semana, com material que ficou guardado por 5 décadas

PUBLICIDADE

Foto do author Danilo Casaletti

“O entrosamento gera o groove”. A frase do guitarrista Hélio Delmiro, um dos mais respeitados músicos da música popular brasileira, guarda uma espécie de chave para entender o que ocorreu no estúdio MGM, em Los Angeles, na Califórnia, entre fevereiro e março de 1974, quando Elis Regina e Tom Jobim se encontraram para gravar o cultuado álbum Elis & Tom.

PUBLICIDADE

Delmiro viajou com a cantora e o músico e arranjador Cesar Camargo Mariano como integrante de sua banda. “Quando eu soube que vinha uma guitarra, eu queria parar o avião no ar”, teria dito Jobim durante as gravações do disco. Ele teria sido resistente àqueles jovens músicos que queriam usar instrumentos elétricos – o maestro, já consagrado internacionalmente, estava com 47 anos.

Essa e outras histórias agora são destrinchadas no tocante documentário Elis e Tom - Só Tinha de Ser Com Você, do diretor Roberto de Oliveira. O filme estreia em circuito comercial nesta quinta-feira, 21, depois de percorrer festivais no Brasil e no mundo.

O encontro entre Tom Jobim e Elis Regina, em 1974 Foto: Acervo Estadão

O disco Elis & Tom foi um presente da gravadora Philips para Elis por seus dez anos de contrato com a companhia. Oliveira, empresário da cantora à época, acompanhou tudo de perto. Inclusive, sugeriu o nome de Jobim para o projeto - Caetano Veloso foi outro nome cogitado – e viajou para Los Angeles a fim de filmar os bastidores da gravação.

Parte desse registro foi exibido pela TV Bandeirantes naquele mesmo ano. A outra, ficou guardada por quase 50 anos até se tornar esse documentário. Em se tratando de making of de da gravação de um disco histórico brasileiro, é peça única. São cenas de ensaio, gravações e conversas entre os envolvidos que agora podem ser vistas, graças a um cuidadoso processo de restauração de som e imagem.

Publicidade

Ao Estadão, Oliveira, que trabalhou com grande parte dos artistas da MPB diz, com tranquilidade, que o projeto ocorreu na hora certa. “Havia muita cobrança. Mas algo me dizia que quanto mais tempo demorasse, melhor ela ficaria. E, realmente, essa distância temporal fez com que o filme se apresentasse pronto para mim”.

Jobim (à esquerda) e Cesar Camargo Mariano (ao piano): divergências em relação aos arranjos Foto: Divulgação/O2 Play

Um dos caminhos que o documentário segue é justamente contar como o conflito inicial entre Jobim, Elis e Mariano, que assinou boa parte dos arranjos do disco, foi se dissipando com o passar dos dias, depois de um período turbulento, ainda fora do estúdio, quando Mariano começou a realizar seu trabalho de arranjador. A pressão de Jobim era tanta que Elis chegou a fazer as malas para voltar ao Brasil. Oliveira a convenceu a ficar.

Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você é um filme sobre um disco, mas também sobre como a música pode derrubar barreiras aparentemente intransponíveis. Por vezes, é possível perceber o que estava ocorrendo pelo olhar, gestos e expressões de Elis, Jobim, Mariano e músicos. Em outras, tudo é verbalizado. Quem assiste agora, tem a sensação de que a tensão entre eles pode mandar tudo pelos ares a qualquer momento, mesmo sabendo que o disco foi gravado.

Mas não. O armistício entre Jobim, Elis e Mariano produziu 14 faixas que entraram para a história, entre elas, o dueto em Águas de Março. Jobim aceitou o piano e a guitarra elétricos. Elis, de interpretações mais explosivas, respirou calmamente entre os compassos da música do maestro. Tudo sob o comando do produtor Aloysio de Oliveira, amigo de Jobim e seu porto seguro.

Elis e Tom no estúdio em Los Angeles: descontração após momentos de tensão Foto: Divulgação/O2 Pla

“Esses dias soube que esse era o disco preferido do Tony Bennett”, conta Oliveira. No documentário, o técnico de som Humberto Gatica, que estreou na função nesse disco, diz que mostrou, certa vez, o álbum à cantora Celine Dion. Ela ficou maravilhada com o que ouviu, segundo ele.

Publicidade

Oliveira acredita que a tensão que marcou as gravações do álbum foi natural. “Contribuiu para a criatividade. É a emoção, o sentimento dos humanos, que aflora e se transforma em música. Mesmo com todas as discussões que envolvem o processo, ninguém tira o olho do objetivo final, que é chegar a uma obra de arte. E isso eles conseguiram”, diz.

Para ele, o tempo e a ida para o estúdio após o período de feitura dos arranjos ajudaram a acomodar tudo. “Quando os talentos de Elis e Jobim se reconheceram, eles se entenderam. Foi uma paixão”, diz.

O documentário extrapola a história do disco. Situa Jobim e Elis como artistas. Tudo para mostrar a importância deles para as novas gerações, segundo o diretor.

No caso da Elis, não à toa, chega em outro disco que ela não chegou a gravar: um projeto ao lado do músico americano Wayne Shorter, em 1981. Aqui, outro conflito, também com Mariano envolvido, não teve a bandeira branca hasteada.

Elis vivia em uma bolha sonora. E o Mariano fazia parte dela, como músico e marido. Toda vez que entrava um personagem que podia, de alguma maneira, tirá-la dessa sonoridade, os conflitos afloravam.

Roberto de Oliveira, diretor e ex-empresário de Elis

Com essa abordagem, o filme entra em um assunto paralelo, mas pertinente: como poderia ter sido a carreira internacional de Elis, sobretudo, sua entrada no mercado americano, na qual Tom fez sucesso? A primeira tentativa foi justamente com o disco Elis & Tom. “Todo mundo achava que Elis seria uma cantora de sucesso internacional. Para isso, ela teria que cantar em inglês, ficar seis meses morando fora e começar praticamente do zero. Ela não quis”, conta Oliveira.

Publicidade

Roberto de Oliveira, diretor do documentário 'Elis & Tom' Foto: Ciça Neder/Divulgação

A segunda, foi a apresentação dela no Festival de Montreux, na Suíça, em 1979. A indústria, naquele momento, buscava nomes para renovar seu casting. Algo como uma Dionne Warwick para viajar o mundo se apresentando.

A terceira tentativa seria o disco com Shorter, cerca de um ano antes dela morrer, aos 36 anos. Se o álbum com o músico americano tivesse se concretizado, o destino de Elis poderia ter sido diferente?

”Pode ser. Ela estava em um nível de perfeição incrível. As possibilidades para ela, no Brasil, já haviam se esgotado. Além de Shorter, ela trabalharia com Ron Carter e Herbie Hancock, nada menos do que três músicos do quinteto de Miles Davis”, opina Oliveira.

Para o diretor, Elis era uma pessoa que vivia de desafios profissionais. Sem eles, a cantora entrava em parafuso. “A Elis tinha a música como a coisa mais importante da vida dela. Quando estava tudo bem na música, o resto ia bem. Ela não foi feliz. Uma pessoa que morre aos 36 anos, no auge da carreira... Foi trágico”, diz.

Uma exposição imersiva na qual a música será protagonista

Elis Regina no estúdio MGM, em Los Angeles, durante gravação do álbum Foto: Divulgação/O2 Play

O documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você irá se desdobrar em outros projetos. Um deles é uma exposição imersiva que deve ocorrer em março de 2024, data exata em que o disco completará 50 anos.

Publicidade

Oliveira registrou o áudio dos ensaios em 16 canais. Em 1974, quando trouxe o material para o Brasil, ele foi agrupado em 8 canais, a tecnologia disponível na época por aqui. Para o documentário, o áudio foi novamente desmembrado, com a ajuda da inteligência artificial. Com isso, foi possível tratar cada canal de voz e instrumentos separadamente, contribuindo para o resultado final.

A ideia é fazer uma espécie de corredor de 50 metros de comprimento pelo qual as pessoas possam caminhar nele e ouvir tudo o que ocorreu no estúdio durante a gravação do disco. “O áudio estará em primeiro plano e não como apenas como uma trilha, como ocorre em muitas exposições”, explica Oliveira.

Há ainda o registro em áudio de um show que Elis e Tom fizeram no Rio de Janeiro em 1974 que, inclusive, guarda um dueto inédito entre eles em Dindi, música que não faz parte do álbum. Oliveira pretende, em breve, lançar esse material.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.