LOS ANGELES — Christian Bale é fã de esportes em geral e, sendo galês, costumava assistir às corridas de Formula 1 – tanto que ele começa a entrevista sobre Ford vs Ferrari, que se passa no mundo do automobilismo, falando de sua admiração por Ayrton Senna e perguntando quem são seus herdeiros no Brasil. Fica abismado ao saber que não há pilotos brasileiros hoje na Formula 1. “Como assim, tem de ter algum!”, diz em entrevista ao Estado.
“Assistir às corridas era um momento de me conectar com meu pai”, conta o ator, que parou de seguir a Formula 1 ao se mudar para os Estados Unidos. “Aí comecei a ver corrida de motocicleta e a andar de moto, mas parei depois de um acidente.”
Seu companheiro de elenco, Matt Damon, ao contrário, nunca foi de acompanhar corridas. “Mas não acho que o filme seja só para fãs de automobilismo”, diz o ator americano. “Eu não sou e fiquei muito emocionado com o roteiro.”
O filme dirigido por James Mangold (Garota Interrompida, Os Indomáveis) aborda a lendária 24 Horas de Le Mans. Damon é Carroll Shelby, o primeiro americano a ganhar a prova, que é obrigado a deixar o automobilismo por causa de problemas de saúde e começa a construir carros em parceria com o piloto e mecânico inglês Ken Miles (Bale).
Quando a Ford começa a ficar para trás, nos anos 1960, com seus carros pouco sexy, seu diretor de marketing, Lee Iacocca (Jon Bernthal), convence o presidente Henry Ford II (Tracy Letts) a entrar no ramo das corridas. Primeiro, eles tentam comprar a Ferrari, sendo passados para trás pela Fiat. Depois, resolvem montar seu próprio time, contratando Shelby para construir um carro capaz de bater a Ferrari.
Mas Ken Miles, rebelde que fala o que pensa e não se conforma com a estrutura corporativa, não é o garoto-propaganda ideal, mesmo sendo o melhor piloto. “Levei meu filho de 8 anos para assistir ao filme, e ele ficou revoltado com a injustiça de não quererem que Ken pilotasse o carro”, conta Bernthal. “Ele era o melhor piloto e conhecia o carro como ninguém. Acho que isso fala muito sobre a rigidez da cultura corporativa daquele tempo, e também de um mundo dominado por homens brancos.”
Josh Lucas, que faz o diretor de corridas da companhia, Leo Beebe, principal opositor de Ken, diz que a resistência a Miles, aberto, emotivo, sempre de camiseta e jeans, vinha da noção do que era ser um homem na época. “Para aqueles caras, Miles representava a direção errada para os Estados Unidos. Ele era uma ameaça à sua identidade. Então tem tudo a ver com o que se passa hoje.”
Shelby e Miles eram como água e vinho, em termos de personalidade – e, de certa forma, os atores que os interpretam também. “Christian tem uma volatilidade inata, enquanto Matt tem um jeito tranquilo, quase zen”, diz Mangold, que prefere em geral escolher atores com estilos e energias diferentes. A dinâmica dos dois personagens estava bem estabelecida no roteiro, segundo Matt Damon. “Foi muito fácil colocar em pé esse relacionamento.”
Para James Mangold, que também não é fã de corridas de automóvel, o filme oferecia uma oportunidade única em termos de visual, por causa da beleza e do dinamismo dos carros em velocidade. E ele tentou fazer o máximo sem efeitos especiais. “Porque é melhor para os atores se eles estiverem em lugares de verdade e não em estúdio. Não é a mesma coisa dirigir com o vento e a areia na cara e com o sol mudando de lugar conforme eles fazem a curva, ou cercado de tela verde”, diz o diretor.
Mas foram outras coisas que fizeram com que se interessasse pelo projeto. Não é difícil traçar um paralelo entre a luta de Shelby e Miles para fazer sua arte, um carro de corrida perfeito, para uma grande corporação, e a jornada de um diretor ou ator para conseguir fazer suas obras em Hollywood. “Esse foi o grande atrativo para mim”, confessa o cineasta. “Reconheço um certo paralelo com minha vida. Eu também convenci empresas a fazerem grandes investimentos em minhas empreitadas artísticas, sem garantia de retorno para eles. Quando mostram fé em você, é preciso entregar. Apesar de não haver praticamente risco de morrer dirigindo um filme, você pode desaparecer se não tiver sucesso. Então até me identifico com Shelby e Miles na questão da mortalidade.”
Matt Damon conta que muito se conversou sobre isso no set do filme. “A dinâmica em Hollywood é muito similar.” Segundo Bale, é preciso aprender a navegar essa dinâmica. “Você precisa estar pronto para a barganha”, diz. “Fazer cinema custa muito dinheiro, mesmo os de orçamento baixo. As pessoas hipotecam suas casas pela segunda vez para fazer filmes. Há muita coisa em jogo. Você aprende a transformar a frustração em motivação, porque não somos bebês querendo brincar e destruir tudo.”
Para Tracy Letts, que também é dramaturgo, um artista americano passa muito tempo vendendo. “É capitalismo”, afirma. “Quando minhas peças são montadas na Europa, a maior parte do dinheiro vem de subsídios do governo. Nos Estados Unidos, temos de aprender a jogar dentro da estrutura.”
Ford vs Ferrari é um dos últimos filmes produzidos pela Fox antes da compra pela Disney. Ninguém sabe se a Disney vai continuar apostando em produções como esta, ou se optará apenas por financiar longas de propriedades Marvel, como X-Men, e continuações, como Avatar.
O diretor e os atores tinham plena consciência de como é raro ver um filme desses feito hoje em dia. “Este roteiro estava rodando fazia tempo, mas ninguém queria financiar”, afirma Bale. “Finalmente, o estúdio se dispôs a se arriscar, colocando a quantidade de dinheiro necessária para um filme de automobilismo que, no fundo, é sobre sonhadores, desajustados e amizades.”
‘Compartilho da preocupação de Scorsese’, diz diretor James Mangold
James Mangold dirigiu Wolverine: Imortal e Logan, mas concorda – em parte – com as críticas que Martin Scorsese fez aos domínios dos blockbusters. Scorsese chegou a dizer que os filmes da Marvel nem eram cinema. “Acredito que seu artigo no The New York Times foi bem mais claro do que sua fala. E eu compartilho sua preocupação”, afirmou Mangold.
O diretor de Ford vs Ferrari só acha que as críticas não deveriam ser dirigidas apenas ao cinema baseado em quadrinhos. “A maioria das comédias, comédias românticas, aventuras, filmes infantis, animações parece ter sido feita num laboratório”, disse ele.
Para James Mangold, nem todo filme aspira ser Cidadão Kane. “E Marty sabe disso, porque é capaz de falar com a mesma paixão de O Monstro da Lagoa Negra ou A Bolha Assassina quanto de Renoir.”
A real discussão, segundo Mangold, tem a ver com a presença nas telas. “Sempre houve filmes ruins ou que só queriam dinheiro. Mas eles não dominavam tudo. A questão é que agora eles ocupam todas as telas, ao ponto de alguém como Martin Scorsese estrear um longa que vai ficar apenas 30 dias nos cinemas nos Estados Unidos, e depois as pessoas vão ter de assistir na TV’’, diz o diretor.
Veja o trailer de Ford vs Ferrari:
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