Era Uma Vez um Gênio, de George Miller, se estende por milênios, mas muitas vezes pode nos deixar mais ansiosos pelo próximo filme do diretor de Mad Max.
Sete anos depois de Estrada da Fúria ter dominado as telas de cinema, o cineasta de 77 anos finalmente está de volta com um filme gestado por duas décadas e pensando muito no que é temporário e o que é eterno.
Em Era Uma Vez um Gênio, que estreia nos cinemas em 1º de setembro, Tilda Swinton interpreta uma acadêmica chamada Alithea, “narratologista” especializada em histórias sobre histórias que encontra um gênio que realiza desejos (Idris Elba), que emerge de uma velha garrafa de vidro comprada no Grande Bazar de Istambul. Como não vem nenhum desejo à sua mente, ele conta a ela 3 mil anos de histórias que lançam o filme através do tempo e que acabam por aproximar Alithea e o Gênio. Se ‘Estrada da Fúria’ trazia uma linha narrativa feroz e direta, Era Uma Vez um Gênio, adaptado de um conto de A.S. Byatt, dá saltos no tempo. É uma história íntima esculpida em proporções épicas.
“Cinemão”, Swinton o caracterizou quando ela, Elba e Miller se reuniram no início deste ano em um quarto de hotel em Cannes, França, pouco antes de Era Uma Vez um Gênio fazer sua estreia no tapete vermelho e enquanto ‘Furiosa’, sequência de Estrada da Fúria, vinha acelerando a fase de produção na Austrália.
Na conversa que se seguiu, o trio ficou claramente encantado por estar junto mais uma vez depois de rodar o filme durante a pandemia – e ainda animado pelas ideias do filme e suas ambições. “A fé para se jogar sobre a barreira mais alta”, disse Swinton sobre os esforços de Miller. “Quem melhor para passar por cima dessa barreira?”
As falas foram editadas por questões de concisão e clareza.
O filme começa sugerindo que maravilhamento e encantamento são espécies em extinção no mundo digital moderno. É um sentimento que vocês três compartilham?
SWINTON: Fico muito feliz de ouvir você usar a palavra “encantamento”. É um filme sobre encantamento. Sobre fé. Sobre a vontade de dar um salto e essencialmente se abrir às mudanças. Não é que essas coisas estejam necessariamente ameaçadas, mas talvez estejam obscurecidas. A realidade está superestimada.
ELBA: Como ator, você às vezes vive nesse espaço estranho da realidade. É um pouco como o Gênio. As pessoas me veem e dizem: “Oh, meu Deus. Você pode me dar alguma coisa?” Uma foto ou um autógrafo ou qualquer outra coisa. Fico me perguntando o que eu sou, de verdade. Quem sou eu? Mas percebo meu papel na minha vida ou na sociedade como contador de histórias e como alguém que faz as pessoas acreditarem que algo é incrivelmente importante. É incrível ficar numa sala com o mestre em pessoa (aponta para Miller) e poder contar uma história sobre contar histórias. Encantamento é uma palavra incrível. Acho que nunca vai se perder.
MILLER: O que é interessante para mim, apesar de todos esses avanços tecnológicos, é que continuamos definitivamente conectados às histórias. Dá para dizer que hoje contamos mais histórias do que nunca. Fiquei realmente impressionado com o fato de Napoleão ter lido todos os livros que existiam na sua época. Agora é impossível ler todos os livros, ver todos os programas de TV, todos os filmes. Não acho que as histórias tenham sido substituídas. Acho que elas só evoluem continuamente. Um censo britânico perguntou às pessoas qual era sua religião e uma porcentagem muito alta respondeu Jedi. Uma forma de mitologia está substituindo outra. Acho que quanto mais confuso o mundo fica, mais tendemos a recorrer às histórias. Às vezes, essas histórias podem ser tóxicas.
SWINTON: Agora tivemos um lembrete muito forte de que é possível que uma nação inteira, uma cultura inteira ouça uma história e acredite nela, excluindo qualquer outra história. Talvez estejamos falando de uma espécie de porosidade das histórias, então é possível se abrir a muitas histórias. Talvez essa seja a coisa mentalmente saudável e espiritualmente saudável a propor.
Você está se referindo à guerra da Rússia na Ucrânia, mas quando vocês começaram Era Uma Vez um Gênio seus pensamentos se voltaram para os momentos em que a narrativa moldou suas próprias vidas?
ELBA: Meu pai começava suas histórias dizendo “Vou te contar uma coisa só por contar”. Meu finado pai.
SWINTON: Você conta essas histórias para seu filho?
ELBA: Tento evitar o celular quando estamos indo para a escola. E a única maneira de mantê-lo interessado em mim é contando uma história. Eu fico tipo: “Bom, hoje vou trabalhar num avião. E você não vai acreditar. Tiraram as asas desse avião”. É um momento mágico este em que ele fica ouvindo e prestando atenção.
George, como um criador de mitos que pode conjurar mundos, você não é muito diferente do Gênio. Por que você se sentiu atraído por um filme que se aprofunda na natureza da narrativa?
MILLER: Uma das minhas citações favoritas é a do contador de histórias suaíli que termina suas histórias dizendo: “A história foi contada. Se foi ruim, é minha culpa porque o contador de histórias sou eu. Se foi bom, então pertence a todos”. Não há dúvida de que as histórias, uma vez contadas, ganham força e significam algo para as pessoas de uma forma ou de outra. Conheço pessoas que conseguem enfeitiçar você só com histórias. Eu sei que tenho dificuldade com isso. Não consigo me levantar e contar bem uma história, de um jeito espontâneo. Mas consigo fazer isso na narração ultra-lenta de um filme, onde eu penso em cada nuance, cada ritmo. Afinal, são apenas cem minutos.
Tilda e Idris, fazer um filme como esse leva vocês a refletirem sobre o que os compele a contar histórias?
SWINTON: Eu nunca fiz nada assim. Mesmo que de um jeito engraçado, o filme é sobre uma das minhas coisas favoritas: a falta de articulação – ou melhor, o esforço que fazemos para nos comunicarmos. Sabendo que é quase impossível nos entendermos, mesmo assim tentamos, e isso me toca muito. É com certeza uma das coisas que me leva a continuar fazendo cinema. Sempre parece muito difícil tirar algo da sua cabeça e transmitir a outra pessoa. Mas o gesto em si já é muito comovente. Este filme é sobre isso, mas é muito articulado. Filmar com George e entender como ele constrói a arquitetura do filme, mesmo que o filme seja sobre algo bastante amorfo e bastante terno, isso é uma aula magna. Conversamos muito sobre manter essa essência de ternura.
ELBA: Sou um pouco como o George. Ficava fascinado com meu pai contando histórias, mas nunca fui bom nisso. Eu me lembro de quando fui para uma escola de meninos. Eu era um dos moleques engraçados. Na aula de teatro, as crianças não conseguiam fazer nada. Não conseguiam fazer crer. Nunca esqueço a expressão do professor: “faz de conta”. Ressoou muito em mim. De repente, eu podia contar a melhor história do mundo porque fazia você acreditar que eu podia. Eu estava realmente ciente da ironia de trabalhar com George e Tilda e estou interpretando um cara que tem que contar histórias com franqueza para ganhar sua liberdade. Eu era Idris interpretando um homem que não tinha permissão para agir como um idiota, mas tinha que contar essas histórias honestas e envolventes.
George, você encontrou o conto no qual o filme se baseia no final dos anos 1990. Por que você acha que esse filme ficou com você por tanto tempo?
MILLER: Tenho muitas histórias. É meio darwiniano. Algumas delas insistem em si mesmas. Achei uma história muito forte. É como um detector de metais ou um contador Geiger: tem alguma coisa que acende um sinal. Você diz: “Oh, tem uma costura rica aqui em algum lugar”. Você não sabe onde vai parar. Você pode sentir vagamente para onde vai quando lê a riqueza do cenário. O tempo vai dizer. E aí você fica torcendo para a história pertença a todo mundo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.