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‘Grande Sertão: Veredas’ ganha filme com Caio Blat em que atores são personagens e cenário; entenda

Longa ‘O Diabo na Rua no Meio do Redemunho’, dirigido por Bia Lessa e exibido na Mostra de Tiradentes, traz elementos do teatro para o cinema; cineasta e elenco descrevem experiência ao ‘Estadão’

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Por Bruno Carmelo

O romance Grande Sertão: Veredas ocupa um espaço muito especial na vida e carreira destes artistas. Bia Lessa confronta-se com o texto de Guimarães Rosa há dez anos, e Caio Blat, há sete. Pouco tempo depois, o ator Leonardo Miggiorin se juntou ao grupo. A dramaturga e cineasta já elaborou projetos literários, teatrais, e, agora, um filme derivado da jornada do jagunço Riobaldo pelo interior do Brasil.

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O Diabo na Rua no Meio do Redemunho apresenta uma leitura bastante particular da história original. O vasto elenco se desloca sobre um palco vazio, diante de um fundo preto infinito. Vestem roupas pretas, discretas. Encenam batalhas, romances e cavalgadas sem o apoio de nenhum objeto de cena.

Os atores encarnam mais de um papel, além de viverem as pedras, os cactos e urubus que sobrevoam a paisagem brasileira. O longa-metragem foi exibido na 27ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, voltada às produções nacionais de linguagem ousada ou experimental.

Caio Blat em 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho' Foto: ATTi Comunicação/Divulgação

Um filme que descamba (como a vida)

“No teatro, a gente tinha muitos olhos em torno da gente, em um dispositivo em 360º. Então havia uma relação direta com as pessoas, o lugar. Era uma peça muito visceral. No cinema, a gente tem que atuar para a lente, como se fosse um único espectador”, compara o protagonista, Caio Blat.

“A gente estava tão preparado para viver os personagens que poderia fazer do avesso, ou de cabeça para baixo”, declara Miggiorin. “O desafio era se manter nove horas no estúdio, suando sem parar, por causa das roupas. No teatro, a gente ficava cinco minutos parados como cactos. Para o filme, ficamos meia hora. Foi um trabalho exaustivo, no melhor sentido do termo. Tinha algo profundo a encontrar nesse contraste com a simplicidade”.

Cena de 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho' Foto: ATTi Comunicação / Divulgação

“O primeiro passo foi abrir mão de tudo o que a gente fez no teatro”, declara a cineasta. “O que a gente leva para o cinema é a potência criada a partir da experiência dos atores. Sou muito apaixonada pela ideia de espaço; meu trabalho até foi intitulado como teatro da imagem”.

“A gente usou tudo que o cinema podia oferecer, no que diz respeito ao som, à edição, aos efeitos. O filme começa com uma câmera firme e controlada, mas no final a imagem está livre, nem tem mais foco. Uma hora ele descamba, como a própria vida”, completa.

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“Esta adaptação preserva a intensidade da peça, mas representa um passo além”, analisa Blat. “É como se fosse a versão final de uma pesquisa de mais de dez anos, que começa com a Bia, lá no Museu da Língua Portuguesa. É um privilégio para um ator ser um herói do Guimarães”

São sete anos convivendo com um personagem tão rico, com tantos sentimentos. Parece que ele sente tudo, sofre tudo. Guimarães Rosa pegou toda a dimensão da literatura universal. Você pode identificar ali passagens de Dostoiévski, de Hamlet, do Budismo, dos Evangelhos”.

Caio Blat

Amor é revolução

Caio Blat compartilha sua percepção sobre o herói Riobaldo, um pobre jagunço que se junta a diferentes grupos no combate sangrento por poder. Enquanto isso, nutre uma relação de amizade e paixão por Diadorim, o misterioso companheiro, de aparência masculina e corpo de mulher.

“O amor dele tem uma estrutura trágica. É um sentimento tão forte, tão violento, que vai transformando aquele jagunço ignorante num homem aberto e sensível. Mas já é tarde demais: eles estão envolvidos na guerra; não tem mais volta. E tanto faz se Diadorim era homem ou mulher. Ele hesitou tanto que perdeu o grande amor da vida dele devido aos preconceitos e medos”.

“Aliás, a proposta sempre foi essa”, o ator relembra. “Nos ensaios, todo mundo fez Riobaldo. Teve Riobaldo homem e mulher, Riobaldo negro e branco, Riobaldo gordo e magro. É muito bonito esse lugar de fala do teatro, onde todo mundo pode ser tudo. Essas liberdades precisam ser celebradas, e transferidas para o cinema também”.

'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho' ainda não tem data para chegar aos cinemas. Foto: ATTi Comunicação / Divulgação

“Antes da sexualidade vem o afeto, e afeto não tem gênero”, declara Miggiorin. “Antes de sermos homem ou mulher, somos humanos, somos uma essência. Existe um embate entre o que é da natureza e o que é cultural. Agora começamos a perceber muitas possibilidades para além de dois únicos gêneros. A gente está rompendo com tudo isso”.

Lessa concorda: “Para mim, o amor é revolução. Quando você está apaixonado, você está em estado de revolução, e revolução significa ampliar limites. O amor do universo e da liberdade transcende as categorias. Caio interpreta Riobaldo, mas o personagem também é vivido por uma mulher. No fundo, a grande inteligência de Guimarães é dizer que o sertão está dentro da gente, no meio dessa natureza arisca”.

Novos Guimarães a caminho

Grandes Sertões: Veredas ainda terá uma longa trajetória nas artes brasileiras a partir deste ano. O texto de 1956 deve seguir nos palcos do teatro, em uma versão totalmente repaginada por Bia Lessa. Ela pretende manter o elenco original, incluindo Caio Blat, Leonardo Miggiorin, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz e Lucas Oranmian.

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Segundo a artista, resta muito a descobrir no livro do escritor mineiro, de modo que uma repetição dos procedimentos estéticos anteriores não se justificaria. Quanto a O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, os distribuidores ainda precisam definir uma data de lançamento para as salas de cinema.

Cena de 'O Diabo na Rua no Meio do Redemunho'. Foto: ATTi Comunicação /Divulgação

Em paralelo, o diretor Guel Arraes, de O Auto da Compadecida, e co-produtor de Redemunho, finaliza sua própria adaptação do texto de Guimarães Rosa. Caio Blat e Luisa Arraes são mantidos nos papéis centrais. Em contrapartida, ele propõe uma versão urbana e distópica do clássico. Riobaldo se transforma num professor de escola pública, enfrentando bandidos na cidade violenta.

“São universos completamente diferentes”, afirma Caio Blat. “O universo do Guel é digital, futurista, repleto de cenários e efeitos. É uma experiência totalmente distinta a partir do mesmo personagem, baseada no mesmo texto. Já tinha imaginado em quantas milhões de possibilidades uma história pode se desdobrar?”, conclui.

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