Opinião | Em ‘Herege’, Hugh Grant usa seu charme de forma diabólica

Novo filme de terror estrelado pelo galã britânico estreia nesta quinta-feira, 21, nos cinemas brasileiros; leia a crítica

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Por Manohla Dargis (The New York Times)

Um dos grandes benefícios de se assistir a muitos filmes são as lições de vida que eles ensinam. Por exemplo, se o anfitrião mencionar que as paredes da casa são revestidas de metal, você imediatamente deve fingir uma dor de cabeça e sair antes que ele feche a porta. Se as janelas da casa parecerem pequenas demais até para uma criança, você também deve fugir. E se houver uma imagem emoldurada do inferno na parede, você definitivamente deve dar uma paulada na cabeça dele e sair correndo. Dito isso, se o anfitrião for interpretado por Hugh Grant, talvez você queira ficar um pouco mais.

Hugh Grant, astuto e exuberantemente vampiresco, interpreta o Senhor Reed em 'Herege' Foto: Divulgação/Kimberley French/A24 via AP

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A partir do momento em que as duas jovens de Herege se apresentam ao Senhor Reed – interpretado por um Grant astuto e exuberantemente vampiresco – fica óbvio que o mais inteligente seria elas dizerem: “Ops, desculpe, endereço errado”. Mas elas não dizem nada, claro, porque são uma isca deliciosamente suculenta, e o gênero de terror exige um pouco de carne humana – além de vidas. Então as moças entram na casa sorrindo – e continuam sorrindo, como se estivessem pedindo pela inevitável ultraviolência, com aqueles jorros e respingos que podem transformar uma casa aparentemente comum num terreno perigoso e, pouco depois, num matadouro sangrento.

Assim que aparecem na tela, as moças, duas missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, começam a esquentar o filme – e nossos corações – com conversas agradavelmente inócuas. Elas são doces e solícitas, mesmo que a Irmã Barnes (Sophie Thatcher) tenha uma aparência cautelosa e um olhar atento que faltam à sua companheira mais incauta, a Irmã Paxton (Chloe East).

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Convocadas a servir, as duas saem viajando de bicicleta por cidadezinhas americanas e acabam parando na casa do Sr. Reed. Ele solicitou algumas informações sobre sua igreja e, pouco tempo depois, eles estão trocando gracejos em sua casa, um espaço sombrio com a iluminação amarelada e crepuscular de um filme de David Fincher dos anos 1990.

A iluminação perturbadora – assim como as janelas estranhamente pequenas e as paredes revestidas de metal – faria com que a maioria das mulheres sensatas parassem para pensar, mas os diretores Scott Beck e Bryan Woods não atribuíram muita prudência a Barnes e Paxton.

As moças são empertigadas, confiantes, estão numa missão e são crentes dedicadas. Elas também são mulheres, então, você sabe, foram criadas para serem gentis. Por uma questão de decoro, não querem ficar sozinhas com o Sr. Reed – elas perguntam educadamente se sua esposa, que não se vê nem se ouve em nenhum lugar, pode se juntar à conversa – mas como estão comprometidas com a palavra do evangelho, elas ficam. Sua fé as torna inocentes – ou pelo menos é o que parece –, o que faz com que sejam uma delícia para o Sr. Reed, cujo sorriso largo e olhos selvagens vão ficando cada vez mais insanos.

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É uma configuração inteligente que Beck e Woods exploram bem quando Herege começa ficar assustador. Muitas das cenas iniciais ocorrem na sala de estar do Sr. Reed, um espaço apertado e fúnebre que, à medida que ele começa a questioná-las – primeiro com toda cortesia, depois, com agressividade – fica cada vez mais claustrofóbico. O ar vai ficando rarefeito à medida que ele as provoca, e os cineastas vão cortando do rosto sorridente do Sr. Reed para o rosto preocupado delas.

Longe das comédias românticas, Hugh Grant não está tentando seduzir ninguém em 'Herege', novo terror que chega aos cinemas Foto: Divulgação/Kimberley French/A24 via AP

No momento em que eles filmam um modelo em miniatura da casa do Sr. Reed, parece claro que o formato hexagonal de sua pequena janela é uma homenagem ao carpete estampado de O Iluminado, de Stanley Kubrick.

No começo, os três personagens se envolvem numa discussão teológica levemente divertida, embora torturante, um foco que cria um bom suspense à medida que o Sr. Reed fica cada vez mais insistente e cruel. Grant está claramente se divertindo muito no filme, e é muito bom vê-lo aqui com olhos frios e predatórios e um sorriso que passa de desconfortavelmente amigável a totalmente diabólico.

Grant foi se soltando ao longo da carreira, como se não estivesse mais inibido pelo peso de interpretar o desejável e previsível protagonista de comédia romântica. Ele não está tentando seduzir ninguém em Herege. Mas não importa. Mesmo quando o filme acaba caindo numa familiaridade decepcionante, o prazer que ele exala como um demônio irredimível é bastante sedutor./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Opinião por Manohla Dargis

Crítica de cinema do 'New York Times'.

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