Homem nu e socos em sessões de Barbenheimer: o que está acontecendo com as pessoas no cinema?

Embriaguez pública, uso ininterrupto de celulares e reações exageradas perturbam as salas de cinema lotadas. Será que as pessoas se esqueceram de como ir ao cinema?

PUBLICIDADE

Por Sofia Andrade e Janay Kingsberry
Atualização:

WASHINGTON POST | Ryan Gosling estava vivendo um grande momento na tela, transformando a casa dos sonhos da Barbie no papel de Ken, quando Tess Connolly, 22 anos, notou algo errado.

PUBLICIDADE

Era a sessão das 21h30 de Barbie no Regal Cinema no centro de Denver, e a gerente da sala de cinema começou a implorar a um homem sentado algumas fileiras à frente de Connolly e seu irmão mais novo. O homem, disse a gerente, precisava sair. Mas o espectador não se mexia. Foi quando cinco seguranças apareceram e Connolly assistiu ao espetáculo à sua frente – e, infelizmente, não era Ken gritando “Sublime!”

“Um dos seguranças estava dizendo para ele: ‘Cara, você não pode ficar pelado aqui’”, lembrou ela. “O cara ficou todo confuso e chateado por não poder ficar nu no cinema. E começou a ficar nervoso”. O segurança pediu às outras pessoas para ajudar a lidar com a situação.

De acordo com Connolly, muitas responderam gritando coisas como: “Tire essa aberração daqui!” e “Minhas filhas adolescentes estão aqui!” Enquanto isso, Barbie continuava rolando ao fundo.

Publicidade

Anúncios dos filmes "Oppenheimer" e "Barbie" no AMC Theaters, em Los Angeles Foto: AP Photo/Chris Pizzello

Experiência arruinada

Embora o homem tenha sido removido do cinema lotado, Connolly teme que possa ter perdido a parte mais engraçada do tão esperado filme de Greta Gerwig.

“Era o momento em que todo mundo ia começar a morrer de rir. E o segurança arruinou totalmente o nosso momento, dizendo, ‘Todo mundo comece a gritar comigo’. E nós pensamos: ‘Não, estamos tentando assistir ao filme’”, disse Connolly.

Barbenheimer – o lançamento duplo dos blockbusters Barbie e Oppenheimer – pode ter quebrado recordes de bilheteria e levado multidões aos cinemas, mas também destacou um problema muito concreto: algumas pessoas parecem ter esquecido como se comportar no cinema, com relatos generalizados de explosões de embriaguez, uso desenfreado de celulares e exibicionismo.

Na sessão de Barbie em um cinema da AMC em Washington, um homem vestindo blusa rosa e muito glitter ficou se identificando em voz alta com os Kens na tela. Ao longo do filme – e apesar de vários pedidos de silêncio – ele torcia, cantava ou se levantava do assento sempre que os Kens se juntavam contra as Barbies.

Publicidade

Ele se desculpou com a plateia a certa altura, explicando que estava “chapado”, mas mesmo assim continuou interrompendo o filme até o clímax, momento em que se envolveu numa briga de tapas com um conhecido sentado ao lado dele. (Um representante da AMC não respondeu imediatamente a um pedido de comentário).

Histórias de espectadores indisciplinados ou desrespeitosos durante sessões viralizaram na internet nas últimas semanas. Em um vídeo particularmente memorável do que parece ser uma sessão de Barbie no Brasil, uma mulher empurra violentamente outra mulher no chão. A luta se desenrola enquanto a música ‘Barbie’, de Billie Eilish (“Eu costumava flutuar, agora simplesmente caio”), toca ao fundo.

Desrespeito generalizado

O mau comportamento também não se limitou ao público energizado de Barbie: “Assisti a Oppenheimer ontem à noite numa das plateias mais malcomportadas que já vi, vários flashes de câmera por toda parte, pessoas na nossa frente rolando o TikTok durante o filme todo”, escreveu o usuário @silvergelpen neste fim de semana no Twitter, que recentemente foi renomeado como X. “Se você não tem atenção suficiente para um filme de três horas, não saia de casa para ir ao cinema”.

Outras pessoas logo concordaram e contaram suas próprias experiências: conversas em voz alta, gente entrando e saindo da sala o tempo todo, gargalhadas em momentos impróprios e vídeos feitos com flash de cenas com potencial de viralização no TikTok.

Publicidade

O caos não se limita aos cinemas. No ano passado, houve uma tendência perturbadora de pessoas na plateia jogando objetos em músicos no palco. Na Broadway, uma mulher indisciplinada interrompeu uma apresentação de A Morte do Caixeiro Viajante em dezembro.

Uma polêmica denúncia da revista Playbill detalhou agressões contra recepcionistas e outros funcionários de casas de espetáculos, que relataram ter levado cuspidas e gritos com frequência. Nem mesmo os céus estão seguros: esta semana, um piloto da American Airlines viralizou por dar um sermão em passageiros “egoístas e rudes” sobre o comportamento no avião (“Ninguém quer ouvir seu vídeo”).

O que aconteceu com o comportamento das pessoas?

Ninguém descobriu exatamente para onde foram as boas maneiras das pessoas – e o que exatamente está causando o atual colapso da civilidade.

Roxane Cohen Silver, professora de psicologia na Universidade da Califórnia, em Irvine, e especialista em estresse e traumas pessoais, diz que esse comportamento pode estar ligado a uma série de acontecimentos recentes.

“É claro que os últimos três anos foram desafiadores para muitas pessoas no nosso país. Vivemos uma série de traumas coletivos, em cascata um depois do outro. Para muita gente, foi quase insuportável. A combinação de pandemia, inflação, tiroteios em massa, desastres climáticos, polarização política e assim por diante sobrecarregou nossa capacidade de lidar com as coisas”, disse Cohen Silver por e-mail. “É importante reconhecer essa realidade ao examinarmos o comportamento geral nesta temporada”.

Frequentadores de cinema têm cada vez mais sido incomodados com pessoas usando celular e até navegando em redes sociais dentro das salas de exibição Foto: Tima Miroshnichenko/Pexels

Outras pessoas estão denunciando a cultura do celular e a necessidade constante e egocêntrica de estimulação. “Durante toda a história dos cinemas, as pessoas foram capazes de prestar atenção. A única diferença agora são os celulares”, tuitou Kat Tenbarge, repórter de tecnologia e cultura da NBC.

Quando Brandon Thint, 24 anos, foi ver Barbie em um Cinemark de Austin, Texas, os últimos vinte minutos da sessão foram estragados por jovens assistindo a vídeos do YouTube perto da frente da sala de exibição, no volume máximo, durante “o clímax emocional do filme”.

Viviana Freyer, 21 anos, teve uma experiência semelhante na estreia de Oppenheimer em Miami. Ela estava animada para ver o novo épico de Christopher Nolan em película de 70 mm, mas a experiência azedou porque um grupo de “adolescentes bem chatos” ficou falando o filme todo, tendo reações altas em “momentos em que você não deveria reagir assim”.

Publicidade

“Entendo que Barbenheimer seja o primeiro grande evento cinematográfico em muito tempo, e as pessoas estão empolgadas com os filmes, e muitas dessas pessoas que estão causando confusão são jovens que estão curtindo a onda Barbenheimer”, disse Freyer. “Mas acho que a tendência recente de filmes super-interativos de super-heróis combinados com a internet e o TikTok meio que criou esse coquetel para mau comportamento nas salas de cinema”.

O comportamento que ela testemunhou, disse, é incentivado pelos filmes de grande sucesso da Marvel, por exemplo, onde o tempo para as reações do público às reviravoltas na trama e personagens surpresas é incorporado ao próprio filme. “Oppenheimer não pretende ser um tipo de experiência esportiva para o espectador”, disse ela.

Vigilância contra a falta de educação

As políticas das salas de cinema, entretanto, estão servindo como última defesa para os fãs frustrados com as explosões de seus vizinhos de assento.

Na Alamo Drafthouse Cinema, uma cadeia conhecida por sua política estrita de “não falar, não enviar mensagens de texto”, os espectadores podem sinalizar discretamente o comportamento indisciplinado levantando um cartão para alertar a equipe.

Publicidade

“Não conseguimos ver tudo que acontece e como isso é perturbador para você, então confiamos nesse tipo de comunicação”, disse Michael Pieri, gerente geral executivo que supervisiona duas unidades da Alamo na capital.

Ele diz que o sistema está funcionando bem. “As únicas vezes em que realmente vejo alguma hesitação é quando alguém está quebrando as regras bem perto de você”, disse Pieri, explicando que algumas pessoas podem se sentir desconfortáveis em denunciar comportamentos na frente das outras. As violações mais comuns dizem respeito à política de atraso da Alamo, que proíbe os espectadores de chegarem 15 minutos após o horário da sessão.

O letreiro do Los Feliz Theatre exibe os filmes "Oppenheimer" e "Barbie", em Los Angeles Foto: AP Photo/Chris Pizzello

Nas semanas desde que Barbenheimer estreou nos cinemas, Pieri disse que certamente houve mais violações da política de conversas e mensagens de texto, “mas é porque tem mais gente nas salas”.

Porém a Alamo fez algumas exceções para o lançamento de Barbie. Ambos os locais de Pieri fizeram eventos “festa do pijama da barbie”, onde as pessoas eram encorajadas a aparecer de pijama. Esses eventos, disse ele, são o que “chamamos de nossas ‘exibições rebeldes’, com políticas relaxadas, quando encorajamos as pessoas a conversar um pouco”.

Publicidade

“O maior problema é que você nunca está completamente preparado”, disse Pieri, observando como os ganhos de Barbie excederam em muito as expectativas de bilheteria. “Quando explode exponencialmente assim, sua preparação só consegue chegar até certo ponto”.

Pedir para alguém parar de perturbar ou levar o problema para os funcionários da sala de cinema também não é um método infalível. (E a parte ofensora pode reagir com ainda mais confusão, como parece ter sido o caso do cinema no Brasil).

“Não quero ser esfaqueado no cinema”

Quando Abby Luca, 19 anos, assistiu a uma sessão normal de Barbie na Alamo Drafthouse em Yonkers, Nova York, ela disse que sua experiência foi arruinada por um grupo de mulheres visivelmente bêbadas que passaram o filme inteiro dançando, falando com as personagens na tela e fazendo outros barulhos.

Embora várias pessoas no cinema tenham pedido às mulheres que ficassem quietas e “a segurança tenha ido até elas umas quatro vezes” para dizer que seriam expulsas, elas receberam apenas advertências.

Publicidade

“Foi extremamente desconfortável, para falar a verdade”, disse Luca, acrescentando que teme ter perdido partes cruciais do filme. “Sinto que havia detalhes que nem conseguimos ver e coisas que não entendi”.

Sua experiência no cinema foi tão perturbada que ela planeja ver Barbie de novo. Um porta-voz da Alamo Drafthouse disse ao Washington Post que não havia registro do incidente, acrescentando: “Não constatamos um aumento no comportamento perturbador do público nas exibições de Barbie e Oppenheimer”.

Luca disse que não pediu reembolso porque “se sentiu mal” pelos funcionários.

“Eu costumava ser aquela pessoa que fica pedindo silêncio o tempo todo. Agora escolho minhas batalhas, porque não quero ser esfaqueado no cinema”, disse Justin Chang, crítico de cinema do Los Angeles Times e da NPR.

Publicidade

Depois de pedir aos espectadores que usassem máscaras no auge da pandemia, os celulares pareciam menos urgentes: “Os hábitos das pessoas eram ruins antes da pandemia. Foram ruins durante a pandemia. E estão ruins agora. É sempre ruim, então prefiro escolher minhas batalhas. Fico insensível às coisas”, diz Chang.

Os horários de projeção de "Oppenheimer" e "Barbie" exibidos atrás da bilheteria do Los Feliz Theatre, em Los Angeles Foto: AP Photo/Chris Pizzello

Da mesma forma, quando alguém sentado ao lado de Alex West, 28 anos, começou a navegar no Instagram por grande parte de Barbie, ele simplesmente optou por ignorar. “A esta altura, é só uma coisa com que você se acostuma, especialmente numa sala de cinema lotada”, disse West.

No final das contas, o fenômeno Barbenheimer, disse Chang, é “um tipo interessante de teste”. Talvez, disse ele, tuitar ao vivo, filmar e falar durante as sessões – “todas essas coisas que são incrivelmente perturbadoras e desrespeitosas para os espectadores” – sejam só a maneira como as pessoas se envolvem com os filmes agora.

“Pessoas agindo como se o espaço público fosse sua sala de estar é um problema que afeta a todos nós”, disse ele, “não apenas [nas] salas de cinema”.

Avi Selk também contribuiu para a reportagem.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.