Análise | Indicados ao Oscar provam a aproximação entre a ficção e o documentário – mas qual o efeito disso?

De ‘Ainda Estou Aqui’ a ‘Um Completo Desconhecido’, produções que disputam a principal premiação do cinema mostram que a confluência entre material ficcional e material documental é cada vez mais intensa. Mas por quê? E qual é o impacto disso no público?

PUBLICIDADE

Por Sérgio Rizzo

A safra de filmes indicados ao Oscar deste ano fornece uma nova oportunidade de constatar a força das imagens documentais no audiovisual do século 21. Há duas maneiras de observar o fenômeno. A mais elementar consiste em conferir os dez filmes que foram indicados ao prêmio — cuja cerimónia de entrega será em 2 de março — pelo setor (“branch”) de documentaristas da Academia de Hollywood, um dos 19 subgrupos de profissionais do cinema que compõem a organização.

São diretores, produtores, montadores e diretores de fotografia com ao menos dez anos de experiência no campo documental, ou que, mesmo sem ter essa experiência, foram previamente indicados ao Oscar. Todos ingressaram por convite. Entre os 37 convidados a entrar no clube em 2024, figuram os documentaristas brasileiros Jorge Bodanzky (em cartaz nos cinemas com As Cores e Amores de Lore, sobre a pintora Eleonore Koch) e José Joffily (de Sinfonia de um Homem Comum, sobre o diplomata José Mauricio Bustani). Não havia nenhum brasileiro entre os 34 documentaristas convidados em 2023.

Da esquerda para a direita: o documentário 'Sem Chão' ('No Other Land') e os filmes 'Ainda Estou Aqui' e 'Um Completo Desconhecido'. Foto: Synapse Distribution/Sony Pictures Classics e Searchlight Pictures/Divulgação

PUBLICIDADE

A Academia não divulga o número de associados por setor, mas sabe-se que o total gira em torno de 11 mil, dos quais cerca de 10 mil são aptos a votar no Oscar (as exceções são os membros eméritos e associados). É provável, portanto, que o “branch” de documentaristas seja composto por algumas centenas de profissionais. Esse recorte do colégio eleitoral hollywoodiano escolheu os cinco longas e os cinco curtas que disputam as duas categorias específicas, a partir de uma lista prévia de candidatos composta, entre outros critérios, por filmes vencedores de festivais reconhecidos pela Academia, como o brasileiro É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários (que celebrará seu 30º aniversário em abril, em São Paulo e no Rio de Janeiro). Nos últimos anos, esse caminho para a noite de gala em Los Angeles tem uma parada de destaque, o Sundance Festival, em Utah (EUA).

Navalny e 20 Dias em Mariupol, os dois mais recentes vencedores do Oscar de longa documental, foram lançados em Sundance. Neste ano, quatro dos cinco candidatos — Black Box Diaries, Porcelain War, Sugarcane e Trilha Sonora para um Golpe de Estado — também começaram a sua carreira no principal festival norte-americano. A exceção é No Other Land. Em pequena amostragem das múltiplas vertentes da produção documental hoje, o conjunto desses filmes reúne olhares para o passado e para o presente, combinando temas como abuso sexual (Black Box Diaries), o desaparecimento de crianças em uma escola indígena (Sugarcane), artistas ucranianos que continuam a trabalhar sob ataques russos (Porcelain War), o envolvimento dos EUA e da Bélgica no assassinato do primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, em 1961 (Trilha Sonora para um Golpe de Estado), e os ataques israelenses a palestinos em Israel (No Other Land).

Os cinco indicados na categoria de curta documental contribuem também para compor um pequeno resumo da variedade da produção, com ênfase em episódios de violência. Em Death by Numbers, uma vítima de arma de fogo em uma escola relembra o trauma. I am Ready, Warden traz um condenado à morte por assassinato que, em seus últimos dias, procura fazer contato com o filho de sua vítima. Em Incidente, material de arquivo de diversas fontes ajuda a reconstituir o assassinato de um homem negro por policiais em Chicago, em 2018. Já Instruments of a Beating Heart e A Única Mulher na Orquestra ocupam-se de temas mais leves e, por coincidência, musicais. O primeiro mostra a perseverança de uma criança determinada a participar, tocando bateria, de uma apresentação na escola, enquanto o segundo apresenta a primeira mulher a entrar na Orquestra Filarmônica de Nova York, a contrabaixista Orin O’Brien.

As imagens documentais — e, por extensão, o poder de envolvimento e convencimento que exercem sobre nós — demonstram também a sua presença no Oscar em um lugar insuspeito: as categorias destinadas aos filmes de ficção. De Ainda Estou Aqui a Sing Sing, passando por A Semente do Fruto Sagrado e Setembro 5, diversos procedimentos do documentário são empregados para conectar as narrativas ficcionais com a realidade, como se os filmes quisessem dizer aos espectadores, em uma espécie de “disclaimer” subliminar: sim, a história a que vocês assistem é apenas uma representação de fatos verídicos, criada por cineastas e encenada por atores, mas acreditem piamente nela porque… foi tudo verdade.

Até mesmo uma ambiciosa invenção dramática como a de O Brutalista, que constrói ao longo de três horas e meia a trajetória de um arquiteto que jamais existiu, busca convencer o público de sua verossimilhança — ou seja, da sua aparência de verdadeiro — por meio de um falso material documental que registra a consagração do trabalho de seu protagonista, o húngaro László Tóth (Adrien Brody), na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 1980.

Publicidade

Curiosamente, foi no Festival de Veneza do ano passado — o mesmo em que Ainda Estou Aqui levou o prêmio de roteiro e deu início à sua bem-sucedida carreira internacional — que O Brutalista recebeu os prêmios de melhor direção (Brady Corbet) e de melhor filme segundo o júri da Fipresci (a federação dos críticos). O epílogo veneziano da trajetória acidentada de Tóth lembra a mãe de todos os falsos documentários inseridos em narrativas ficcionais e também dos “mockumentaries” (filmes ou séries de ficção que se apresentam inteiramente como se fossem documentários, ao estilo de Zelig e The Office): o bloco News on the March, célebre cinejornal que resume a vida de Charles Foster Kane (Orson Welles) e o coloca ao lado de Adolf Hitler, em Cidadão Kane (1941). Assim como Kane foi esculpido à imagem e semelhança do magnata da imprensa William Randolph Hearst (1863-1951), László Tóth tem traços de dois arquitetos húngaros, Marcel Breuer (1902-1981) e Erno Goldfinger (1902-1987), combinados aos de um personagem de ficção, Howard Roark, do romance A Nascente (1943), de Ayn Rand (1905-1982).

Já a engenharia de A Semente do Fruto Sagrado — que recebeu o prémio especial do júri, o da Fipresci e do júri ecumênico no Festival de Cannes de 2024 — ergue de maneira habilidosa a sua estrutura ficcional a partir de pilares documentais. Na trama criada pelo diretor e roteirista iraniano Mohammad Rasoulof, a promoção de um investigador (Missagh Zareh) a juiz da Corte Revolucionária de Teerã conduz sua mulher (Soheila Golestani) e as duas filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki) a um turbilhão sem fim. Como pano de fundo, a violenta repressão policial às manifestações populares no Irã em 2022 e 2023, desencadeadas pela prisão, tortura e morte de Mahsa Amini, 22 anos, que havia desafiado as autoridades religiosas do país ao não usar em público o hijab (lenço que cobre o cabelo, as orelhas e o pescoço das mulheres).

Cenas da repressão estatal aos protestos pontuam a história por meio de imagens captadas por telefones celulares — brutais, incômodas, revoltantes. A família do juiz é fictícia, mas espelha situações verídicas, e lá está mais uma vez a força do material documental para sublinhar que “foi tudo verdade”. Não por acaso, A Semente do Fruto Sagrado foi filmado em segredo, com financiamento franco-alemão, e Rasoulof, preso e condenado a oito anos de prisão, precisou fugir do país.

Em função de seu tema, o projeto RTA - Rehabilitation Through the Arts (reabilitação por meio das artes), Sing Sing aventurou-se por um caminho híbrido entre a ficção e o documental. Indicado ao Oscar de melhor ator pelo segundo ano consecutivo (no ano passado foi por Rustin), Colman Domingo interpreta um presidiário que participa ativamente do RTA no Centro Correcional Sing Sing, penitenciária de segurança máxima no Estado de Nova York. Ele ajuda a coordenar os trabalhos de um grupo que encena peças, escreve ocasionalmente textos para montagens e atua no palco ao lado de colegas, também presidiários, sob a supervisão de um diretor (Paul Raci).

Publicidade

PUBLICIDADE

Boa parte dos personagens é interpretada por ex-detentos que participaram do programa, alguns deles usando os próprios nomes, e que recriam peças teatrais e situações das quais participaram. Esse convite à encenação de si próprio encontra eco em procedimentos de diversos documentários, como o recente As 4 Filhas de Olfa, que recebeu o prémio de melhor documentário em Cannes e disputou o Oscar em 2024. Ao final, Sing Sing recorre a uma prática quase institucionalizada em filmes baseados em fatos e personagens verídicos: imagens documentais — neste caso, de qualidade caseira, gravadas majoritariamente por telefones celulares de espectadores —com espetáculos produzidos nos últimos anos por integrantes do RTA.

O mesmo procedimento ajuda a concluir Ainda Estou Aqui em chave altamente emocional, sobretudo para o público brasileiro, mais capaz de se conectar com eventos conhecidos em maior ou menor grau no país há muito tempo do que a imensa maioria dos espectadores estrangeiros — embora eles provavelmente saibam que o Brasil viveu uma ditadura militar entre 1964 e 1985, parece razoável supor que não conheçam nomes e trajetórias de suas vítimas.

Fernanda Torres em 'Ainda Estou Aqui'. Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

Para efeito de mobilizar as emoções de todo esse contingente, o que conhece e o que previamente não conhece, uma coisa (boa coisa, por sinal) é Fernanda Torres interpretar Eunice Paiva (1929-2018), a viúva do ex-deputado Rubens Paiva (1929-1971), com toda a liberdade dramática que o cinema oferece a quem cria personagens com base em pessoas que existem ou existiram. Outra coisa, bem mais impactante, é o forte sentimento que cada um leva da sala de cinema para casa ao ver no final imagens da própria Eunice. Sim, foi tudo verdade.

O recurso das imagens documentais ao final de filmes de ficção tornou-se tão rotineiro que muita gente estranhará, ao final de Um Completo Desconhecido, que não apareçam (perdão pelo spoiler) imagens de arquivo dos “autênticos” Bob Dylan, Joan Baez, Pete Seeger e Johnny Cash. Neste caso, leva-se para casa apenas as versões ficcionais de Timothée Chalamet, Monica Barbaro, Edward Norton e Boyd Holbrook.

Publicidade

Em uma sociedade hiperconectada em tempo real a representações do mundo nas redes sociais (por meio de “lives”, “reels” e “stories”), não causa estranhamento que a indústria do audiovisual venha encarando com apetite o filão das cinebiografias de pessoas vivas, como em Um Completo Desconhecido. O espectador mais jovem poderá supor que sempre foi assim, mas não foi. No século 20, o padrão — ainda que não a regra — na indústria do cinema era o de optar por reconstituir vidas de pessoas mortas (como Maria faz com Maria Callas). Agora, multiplicam-se os exemplos de quem não só está vivo, mas participa ativamente — como produtor, roteirista ou consultor — da recriação de sua vida. Não é o caso de Bob Dylan, mas foi, recentemente, o de Joy Mangano em Joy (2015), o de Elton John em Rocketman (2019), o das irmãs Venus e Serena Williams em King Richard: Criando Campeãs (2021) e o da nadadora Diana Nyad em Nyad (2023), apenas para citar filmes de safras recentes do Oscar.

Um efeito residual dessas confluências cada vez mais intensas — entre material ficcional e material documental, entre o real e a representação do real — é a cobrança cada vez mais intensa, nas redes sociais, de narrativas audiovisuais de ficção como instâncias que, em tese, deveriam ter compromisso com a “verdade” (cujo entendimento, sabemos, varia de acordo com o que pensa cada pessoa que a procura nos filmes).

“Fidelidade” é uma palavra que há muito tempo costuma ser usada para medir um suposto grau de autenticidade em transposições literárias para o cinema e a TV. Agora, ela tem sido empregada também não só para avaliar (e muitas vezes condenar) filmes e séries inspirados em fatos e personagens verídicos, mas também para submeter a um “filtro de realismo” ou a um “detector de autenticidade” inclusive as obras que não se propõem a surfar na praia da recriação realista. Quando tudo precisa parecer “verdade” no sentido restritivo do termo, o da “veracidade”, perde-se de vista a verdade da ficção como algo sem amarras — o elemento às vezes intangível que nos move e nos mobiliza como espectadores mesmo nos recantos mais inverossímeis da representação.

Análise por Sérgio Rizzo

é jornalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.