Inspirado em conto do escritor Murakami, 'Drive my Car' desenvolve sofisticado jogo metalinguístico

No filme, a trinca amor-traição-fidelidade põe a amizade e o perdão à prova todo o tempo

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Por Caetano Vilela

O cineasta japonês Ryûsuke Hamaguchi viu no conto Drive My Car, de Haruki Murakami, uma oportunidade única para celebrar um autor que já estava no seu radar: o dramaturgo russo Anton Chekhov (1860-1904). Não seria equivocado dizer que o diretor trabalhou no seu roteiro “a partir de”, e não “baseado em”, já que Hamaguchi explicita o que Murakami insinua ao usar a peça Tio Vânia, de Chekhov. Ele cria uma dramaturgia paralela, em parceria com Takamasa Oe, espelhando os personagens do filme com os da peça russa; trata-se de um sofisticado jogo metalinguístico que vai muito além do conto e que precisa de tempo para ser desenvolvido. Sua adaptação dura três horas e nos entrega muito mais do que o conto original, com pouco mais de 30 páginas.  Um resumo temático sobre o enredo de Drive My Car poderia servir também para Tio Vânia: a trinca amor-traição-fidelidade é somada a uma resiliência em escala social e humana na qual a amizade e o perdão são postos à prova todo o tempo. Hamaguchi já declarou que o mais fascinante em Chekhov é a “onipresença da palavra” – sim, seu teatro prescinde de ações físicas e os conflitos são resolvidos por meio da palavra. Chekhov precisou de apenas oito anos (1896 a 1904) para criar uma tetralogia que resume um período de constantes mudanças, políticas e sociais, cuja atualidade ainda nos assombra: A Gaivota, Tio Vânia, Três Irmãs e O Jardim das Cerejeiras

Cena do filme 'Drive My Car', do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi, que concorre ao Oscar Foto: Janus Films

O protagonista de Drive My Car é um ator e diretor reconhecido por suas atuações no teatro, no qual não faz escolhas comerciais: acompanhamos suas apresentações bem-sucedidas como o protagonista Vânia, sucesso que o leva a dirigir a peça em Hiroshima, onde precisa ficar por dois meses. Nada disso está no conto de Murakami, mas é como se do texto nascesse a gênese destes personagens em um filme independente. Tão independente que o longa praticamente só começa depois de um prólogo de 40 minutos, que mostra o que está em segundo plano no conto: as relações conjugais entre o ator/diretor e sua mulher e o trágico destino que o afeta. Apenas depois é que a dramaturgia chekhoviana comanda o filme e tudo começa a fazer sentido: a relação monossilábica com a motorista, a paisagem moderna e catártica de Hiroshima, os ensaios exaustivos com os atores e, por fim, o espetáculo pronto. 

Ryusuke Hamaguchi, diretor de'Drive My Car', na75ªBritish Academy of Film and Television Awards (BAFTA) noRoyal Albert Hall em Londres Foto: Peter Nicholls/Reuters

Quando vemos uma encenação em que cada um interpreta no seu idioma, nós, espectadores do filme, nos damos conta de que, ao se valer da dramaturgia de Chekhov, Hamaguchi a contextualiza e nos tranquiliza sobre nosso futuro pós-pandemia. A personagem da atriz (Park Yu-rim) que interpreta Sônia, sobrinha de Vânia, é muda; seu monólogo final de consolo e esperança ao tio é feito na linguagem de sinais coreana.  Uma cena indelével – a realidade que vem depois é apenas para que não nos esqueçamos de que “viver é preciso (...), suportaremos com paciência os golpes do destino”.

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