‘Ir à igreja não significa que a pessoa não comete pecados’, diz François Ozon; conheça novo filme

Cineasta francês explora a morte, a culpa e a distância entre pais e filhos em seu novo filme, ‘Quando Chega o Outono’, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 27, e parte de uma história que aconteceu em sua família

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Por Bruno Carmelo

À primeira vista, Michelle e Marie-Claude são duas avós comuns, que vão à igreja e sonham em receber visitas dos netos. No entanto, em Quando Chega o Outono, as aparências enganam. A primeira tem desavenças profundas com a filha, enquanto a segunda espera que o filho saia da prisão. Uma noite, durante o jantar, Michelle serve cogumelos venenosos à filha, e quase a mata por intoxicação. Terá sido apenas um engano? O que estas personagens escondem?

O novo filme do diretor François Ozon, de 57 anos, aposta numa mistura curiosa de gêneros. Instantes cômicos se misturam ao suspense e ao melodrama, numa combinação que levou mais de 650 mil franceses às salas de cinema. A partir de 27 de março, a obra chega aos cinemas brasileiros pela Pandora Filmes.

Hélène Vincent e Josiane Balasko são amigas no filme 'Quando Chega o Outono', novo trabalho de François Ozon Foto: Pandora Filmes/Divulgação

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Em entrevista ao Estadão, o cineasta explica que a premissa parte de uma história pessoal. “Quando eu era pequeno, uma tia querida organizou um jantar de família. Para a ocasião, ela colheu cogumelos na floresta perto de casa. À noite, depois de comerem o jantar, todos passaram mal, e alguns precisaram ir ao hospital — menos ela, que não provou o prato."

Ozon soube do ocorrido por seus pais, já que não foi ao jantar. “Ainda era pequeno, então não fui convidado”, conta, antes de recordar sua reação inusitada. “Eu adorei essa história de que a minha tia tenha tentado matar a família inteira; achei engraçadíssimo. Eu já tinha um humor meio estranho.”

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Ora, este é apenas o ponto de partida do roteiro, que explora a inserção social dos septuagenários, a liberdade feminina e a distância que pode existir entre pais e filhos. Ozon considera um “gesto político” colocar mulheres de mais de 70 anos como protagonistas, tendo desejos e uma vida ativa, longe dos estereótipos da “vovó bondosa”.

“As mulheres de mais de 70 anos — ou mesmo, de mais de 60 anos — são invisibilizadas no cinema francês", afirma. “Nós as vemos cada vez menos, e quando estão presentes, elas já fizeram tantas cirurgias plásticas que nem sabemos ao certo qual idade elas têm. Eu queria mostrar rostos verdadeiros, com mulheres belas que assumem a sua idade aos 80 anos”.

Daí o desejo de trabalhar, mais uma vez, com Hélène Vincent e Josiane Balasko, retomando a parceira do sucesso Graças a Deus (2018): “São duas atrizes que eu adoro, e que se mantêm muito naturais.”

Outra atriz que formou uma parceria frutífera com o cineasta é Ludivine Sagnier, uma das protagonistas de Swimming Pool: À Beira da Piscina (2003). Agora, ela encarna uma filha amargurada e depressiva, incapaz de aceitar o passado sombrio da mãe idosa. “Eu não trabalhava com Ludivine há vinte anos. Eu a deixei em Swimming Pool, à beira de uma piscina, de biquíni, e agora, é belo perceber que ela se tornou uma mulher de 40 anos, mãe de três filhos. Não é a mesma pessoa. É emocionante, enquanto diretor, filmar o tempo que passa e descobrir uma nova atriz.”

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Morte, culpa e religião

Quando Chega o Outono lida com dois temas bastante explorados na filmografia de Ozon: a morte e a culpa. Ele atribui esta recorrência à educação católica na infância, antes de se “libertar” — em suas palavras —, e se tornar ateu. O conservadorismo e a noção de “decência” feminina atravessam as vidas traumatizadas das mães e dos filhos. “A culpa, o pecado e a transgressão são temas que me interessam bastante”, aponta.

O cineasta cita como muito importante a descoberta, durante sua adolescência, da “hipocrisia que pode existir na religião”: “O discurso prega uma forma de amor muito diferente dos atos praticados por seus pregadores. O fato de ir à igreja não significa que a pessoa não esconde segredos, ou não comete pecados!”

Ludivine Sagnier, de 'Swimming Pool', repete parceria com François Ozon em 'Quando Chega o Outono' Foto: Pandora Filmes/Divulgação

No caso deste suspense, ele apresenta duas grandes amigas com maneiras diferentes de lidar com o passado. Curiosamente, Josiane Balasko, atriz acostumada à comédia e ao cinema popular, interpreta a personagem amargurada, enquanto Hélène Vincent, atriz famosa no teatro clássico francês, encarna a figura mais despojada.

Ozon comenta: “Na vida, existem pessoas muito diferentes. Algumas avançam: jogam a poeira pra baixo do tapete e seguem em frente. Elas sabem que lhes restam cinco, dez anos de vida, então não dá para ficar remoendo o que passou. Michelle pensa apenas em aproveitar o resto de sua vida com o neto. Mas Marie-Claude tem outra maneira de enxergar a vida.”

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O roteiro surpreende os espectadores devido às reviravoltas e atitudes controversas das personagens. O diretor se felicita por esta característica, capaz de provocar os espectadores. Para ele, na hora de escrever uma história, é melhor abandonar a moralidade e as boas condutas. “Eu apenas mostro que as pessoas fazem o melhor que conseguem em situações complicadas”, diz. Ele espera que estas provocações despertem um “olhar diferente” no espectador ao final da sessão.

‘Encontro críticas pouco aprofundadas’

Mas como continuar instigando o público após tantos filmes? Afinal, o cineasta segue fazendo um longa-metragem por ano, desde o fim da década de 1990. Ozon define este ritmo trabalho como “uma aventura apaixonante”, e pontua: “As pessoas pensam que a gente para de viver quando filma, mas é um equívoco. A filmagem é a vida na sua plenitude. Enquanto eu tiver a oportunidade de manter este ritmo, pretendo continuar.”

Mesmo assim, afirma não ter um “plano de carreira a longo prazo”, incluindo temas ou gêneros que ainda pretenda explorar. Ele gosta de amadurecer progressivamente as ideias, que passam naturalmente à realização quando estão na hora certa para tal. Adota, como único pressuposto, a vontade de não se repetir, mudando de cenários e tons entre cada projeto.

Em paralelo, prefere não assistir aos filmes do começo de carreira: “Tenho dificuldade em olhar para o passado. Quero estar no presente, e seguir em frente”. Mesmo assim, quando estas oportunidades acontecem, ele aponta que o olhar muda.

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“Eu já tive a impressão de ter fracassado totalmente em algumas escolhas, mas depois, quando revejo, penso: ‘Na verdade, não ficou tão ruim assim’. Ou, pelo contrário, algumas escolhas que me pareceram muito acertadas, na época, hoje me dão vergonha”, reflete. Mesmo assim, afirma ter carinho pelos filmes que dirigiu: “Compreendo que eu era outra pessoa. Gosto de perceber o tempo que passou.”

Apesar de ser um artista querido em seu país, recebido com bastante entusiasmo pela imprensa, ele afirma que a maior parte das críticas e comentários a respeito de seu trabalho não lhe desperta a atenção. “Quando escrevem apenas ‘maravilhoso’ ou ‘péssimo’, cinco estrelas ou zero estrela, não vejo interesse. Gosto de encontrar um ponto de vista desenvolvido sobre o filme — positivo ou negativo, tanto faz.”

“Encontro sobretudo as reações epidérmicas, pouco aprofundadas. Mas isso faz parte da sociedade de hoje”, completa, antes de concluir: “De qualquer modo, Quando Chega o Outono estreou na França e teve um acolhimento muito caloroso. Agora, o que vier, em termos de discussão, será a cereja do bolo”.

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