Ítala Nandi segue sendo uma atriz libertária aos 82, mas diz: ‘Sou uma mulher reprimida’

No filme de Anna Muylaert, o 27º de sua carreira, atriz contracena com grandes nomes da dramaturgia interpretando predadoras que reproduzem o modelo masculino de dominação

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Aos 26 anos, Ítala Nandi protagonizou o primeiro nu do teatro brasileiro. “Não foi nenhuma grande provocação, fui eu que sugeri porque senti que seria uma prova do amor da minha personagem pelo seu homem na montagem da peça Na Selva das Cidades.” Ingenuamente, e sem nenhum preconceito, Ítala conta que achava que o nu artístico já existisse no teatro de revista. Tomou um choque ao descobrir que não. Talvez venha daí, e de outras escolhas que fez, antes e depois, no teatro, cinema e TV, a fama de ‘libertária’. Aos 82 anos - nasceu em 1942 -, a gaúcha de Caxias do Sul não perdeu a capacidade de surpreender, e maravilhar. Estreia na quinta, 28, o 27º filme de Ítala. Ela acha que fez mais, “pelo menos 30, mas se alguém se deu ao trabalho de contar, então pode ser”.

O Clube das Mulheres de Negócios, escrito e realizado por Anna Muylaert, integrou a competição do Festival de Gramado, em agosto. As mulheres poderosas do título são predadoras que reproduzem o modelo masculino de dominação. É um filme que poderá provocar polêmica. O indiscutível é que Ítala Nandi segue arrasadora - inteirona -, com direito a uma cena de sexo grupal em que aparece, mais uma vez, nua.

Ítala Nandi protagonizou o primeiro nu do teatro brasileiro, aos 26 anos; aos 82, ela está em 'O Clube das Mulheres de Negócios' Foto: Roberto Cardoso JR./ Divulgação

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“Não sei o que as pessoas pensam de mim. Longe das telas, do palco, infelizmente sou uma mulher reprimida, ou que sofreu repressão, como a maioria das brasileiras. Imagina que a Anna (a diretora) não acreditou quando disse que nunca havia feito suruba na minha vida. ‘Nunca?’ Nunca! Mas a cena exigia e eu fiz. Só pedi aos rapazes que fossem gentis comigo. Eles foram”, e Ítala dá uma risada gostosa.

Ela começou no teatro integrando um grupo amador da Aliança Francesa em Caxias. O pai, um imigrante italiano, fundou a primeira cooperativa brasileira - uma associação de vitivinicultores - e é o responsável por ela ter feito o curso de contabilidade: “Sou formada!” Puxada pela arte, fez teatro em Porto Alegre e migrou para São Paulo, acompanhada do então marido, Fernando Peixoto. Participou de montagem históricas no Teatro Oficina - Os Pequenos Burgueses, O Rei da Vela. “Como eu era boa de organização, contadora, coisa e tal, fazia a produção com Etty Frazer. Também atuávamos.”

Lembra os sobressaltos, quando o teatro, sob a ditadura, sofreu ataques da direita. “Ameaçavam explodir a gente.” Recorda que a maior contribuição de Zé Celso Martinez Corrêa - e Fernando Peixoto - talvez tenha sido livrar o texto de Gorki da linguagem impoluta. “Reproduzíamos a linguagem das ruas. Tinha gente que pensava que a peça era de autor brasileiro.”

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Ítala Nandi no cinema

No cinema, estreou fazendo uma turista brasileira num filme gringo. A maioria das fontes cita O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, que veio depois e foi o segundo ou terceiro, como sendo seu primeiro filme. “Era uma das vítimas.” No começo dos anos 1970, fez o episódio de Luiz Rosemberg Filho para América do Sexo e Prata Palomares, de André Faria, com quem se casou depois de Peixoto e é o pai de seu filho. O filme foi selecionado para a Semana da Crítica de 1972, mas a exibição foi suspensa, a pedido da ditadura. Cannes, mesmo assim, promoveu uma sessão secreta.

“O Prata foi aclamado, virou bochicho no festival. Só foi liberado 15 anos depois. Se o filme tivesse passado na época certa, tenho certeza de que a história do André e do próprio cinema brasileiro teriam sido outras. Revi o filme e segue mais atual que nunca”, nota.

No cinema, ainda filmou com Ruy Guerra - um de seus filmes menos conhecidos, Os Deuses e os Mortos - e Joaquim Pedro. Com esse, fez Guerra Conjugal e O Homem do Pau Brasil. “Joaquim era casado com Cristina Aché, e ela me contou que ele tinha sonhos recorrentes em que eu aparecia como Oswald de Andrade. Ele se convenceu de que eu devia fazer o Oswald, que tinha um feminino muito forte, mas eu defendi que devíamos ter um Oswald dual. Fiz a parte feminina e o Flávio Galvão, a masculina.”

Ítala Nandi está no filme 'O Clube das Mulheres de Negócios', escrito e realizado por Anna Muylaert Foto: Aline Arruda/ Divulgação

Ítala Nandi na TV

Teatro, cinema. Faltava TV. “Fui chamada para fazer uma novela da Janete Clair que não havia ido para o ar. A Noiva das Trevas, a história de Joana, a Louca. Reescrita por Walter Negrão, virou Direito de Amar. Jayme Monjardim era o diretor, estava estreando. Ele não conseguia achar uma atriz para o papel. Ninguém queria fazer uma mulher que permanecia trancada por, sei lá, 20, 30 capítulos e da qual só se ouviam os gritos. Eu achei instigante. Fiz, e foi o maior sucesso. Joana era tiranizada pelo personagem de Carlos Vereza, o Sr. De Montserrat, um horror.”

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Com Monjardim, Ítala iniciou outra novela que virou cult, Pantanal. “Eu fazia a protagonista, mas veja como são as coisas. Por essa época, descobri a conexão indiana do meu nome, Nandi. Interessei-me pela cultura da Índia, por sua diversidade cultural e religiosa. Aqui temos O Pai, o Filho e o Espírito Santo. Lá eles também tem uma tríade - Brama, Vixnu e Shiva. Quis fazer um filme, buscava patrocínio. Um dia recebi o telefonema do embaixador indiano, que era de Goa e, portanto falava português, com sotaque de Portugal. Disse que o governo da Índia ia colocar dinheiro no meu filme. Fui ao Jayme dizendo que tinha de largar a novela. Como? Ninguém acreditava que eu fosse fazer isso, mas dei a ideia. Minha personagem sofria um acidente de avião e era salva pelo Velho do Rio. Minha solução é que, em vez de ser salva, ela morresse.” E Ítala morre de rir, contando o episódio.

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Tem sido uma vida rica de experiências, amores - casou-se três vezes. Trocou de nome, Ítala com dois Ts, “mas já voltei a um só, sou Ítala de novo.” Amou a experiência de fazer O Clube das Mulheres de Negócios. “A Anna é uma roteirista e diretora incrível, e nós éramos um time maravilhoso de mulheres. Minha personagem é a única que...” Para bruscamente a frase. Olha o spoiler. Spoiler do quê? Veja o filme para matar a charada.

Ítala faz questão de repetir algo que ouviu da diretora. “Ela me disse assim. ‘Você, na juventude, com suas atitudes, foi uma grande libertadora da sexualidade das mulheres. E agora penso que você poderá fazer a mesma coisa para mulheres de outra faixa etária.’ Achei isso uma das coisas mais lindas que me disseram, essa confiança.”

Ítala credita a boa forma à vida saudável. “Não vivi a era do desbunde, não curti as drogas. Fui sempre da ala mais engajada, política.” E tem os genes. “Na minha família muita gente passou dos 90. Estou chegando lá.”

Conta uma história que vale lembrar. “Quando fui para Porto Alegre, lá atrás, participei de uma montagem de Nelson Rodrigues com direção de Fernando Torres, no Teatro dos Sete. Fiquei amiga de Fernanda (a Montenegro). Até hoje a gente se telefona. Um dia a Fernanda me chamou para irmos a um lugar. ‘Que lugar?’ E ela - ‘Já conto.’ Chegamos, era um laboratório. Na rua, as pessoas já a identificavam. Não tinha selfie, mas paravam para cumprimentar, abraçar. Fernanda contou que há três anos estava tentando engravidar. Estávamos indo buscar o teste. Ela saiu sacudindo aquele papel, aos gritos - ‘Estou grávida!’ Participei daquele momento glorioso dela”.

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Ela prossegue: “Fico feliz de lembrar a história, que selou nossa amizade, agora que minha amiga e a Fernandinha (Torres) colhem esse sucesso estrondoso com o Ainda Estou Aqui. Só espero que o filme do Walter (Salles) chame público para o nosso filme, também. Em Gramado, não ouvi críticas negativas de ninguém ao Clube das Mulheres de Negócios, mas na fila do banheiro as pessoas estavam surpresas, e mais que isso, perplexas. Escreve aí, vão ver que vale a pena.” E vale mesmo.

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