Joaquin Phoenix, ‘possuído’ pelo Coringa

Longa de Todd Phillips reflete o mundo ao revelar como se cria o supervilão

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Começou a temporada do Oscar, mas quem espera por uma possível candidatura, e até vitória de Brad Pitt como melhor ator em 2020 por Era Uma Vez... Em Hollywood, de Quentin Tarantino, ou principalmente Ad Astra - Rumo às Estrelas, de James Gray, já pode ir desistindo. Joaquin Phoenix está um arraso e a transformação de Arthur em Coringa, no longa de Todd Phillips, que estreia nesta quinta, 3, é de cortar o fôlego. Tudo bem que a Academia não é muito chegada em premiar astros pop, exceto os pops que ela própria elege e transforma em quetais. Joaquin já vem flertando com o prêmio há tempos, poderia até já ter ganhado, mas o seu palhaço do crime é realmente algo muito especial.

Desde Cesar Romero, nos anos 1960, o Coringa já teve várias representações na tela. Jack Nicholson, Heath Ledger, Jared Leto, as principais. Ledger chegou a ganhar, postumamente, a estatueta de melhor coadjuvante pelo filme de Christopher Nolan sobre o cavaleiro das trevas. Coringa, o filme, não é exatamente um blockbuster, nem uma aventura de super-heróis, mas mostra a construção do vilão, o que George Lucas já fez na segunda trilogia de Star Wars, que, cronologicamente, na estruturação geral da série, virou a primeira. Coringa não tem o Batman, mas tem Bruce Wayne, e o descontrole final, o caos do mundo metaforizado pela orgia destruidora dos palhaços, leva à tragédia fundadora do herói das HQs. É um drama, e fortíssimo, e isso talvez avalize as chances do filme no Oscar, já que a Academia, vale ressaltar, não gosta muito de dar prêmios para blockbusters.

Sinistro. Joaquin Phoenix como Coringa, no filme que estreia nesta quinta: gênio do crime cruel, longe do pateta brincalhão da TV Foto: Warner

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Toda a questão colocada em Coringa é basicamente uma - Joaquin Phoenix é genial no papel, mas até que ponto se trata de um bom ou mesmo grande filme? Para criar seu vilão monstruoso, o diretor Phillips retrata o estado do mundo para chegar a essa ausência de esperança que, de alguma forma, gera o que se pode definir como semente do mal. Talvez sejam conceitos muito genéricos e até fáceis, talvez a economia e a política, e a tragédia dos refugiados e imigrantes necessite de focos mais acurados, mas o que está em jogo é o “outro”. Uma das tragédias desse mundo moderno pode estar na crise da palavra, ou então nessa dificuldade, cada vez maior, que as pessoas enfrentam para se abrir para o outro. 

Nesse sentido, Coringa e Encontros, o longa do francês Cédric Klapisch que também estreia nesta quinta, 3, são como as duas faces da mesma moeda. Um filme solar e outro lunar. “A feel good movie”, como dizem os norte-americanos, para fazer o público se sentir bem, e a viagem ao coração das trevas.

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Todd Phillips, que dirige Coringa, ganhou projeção com a série de comédia The Hangover/Se Beber, não Case, que completa dez anos em 2019. Bradley Cooper virou astro, tornou-se diretor, concorreu ao Oscar (com Nasce Uma Estrela) e agora produz o Coringa

Parcialmente inspirado em O Homem Que Ri, de Victor Ri - e na interpretação que Conrad Veidt deu do personagem -, o Coringa é um supervilão de ficção que surgiu nas HQs. Criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, apareceu pela primeira vez em Batman #1, em abril de 1940. Desde o começo surgiu para ser um psicopata sádico e doentio, com aquela gargalhada sinistra, mas o código de censura dos comics e, depois, da TV e do cinema transformou-o num pateta brincalhão. Tim Burton e Christopher Nolan resgataram o gênio criminoso e cruel. Todd Phillips radicalizou. Como produtor e diretor, ele já andou dizendo que cansou da comédia porque o humor, segundo ele, não dá mais conta de criticar a sandice do mundo. Phillips já se perguntou: como a ficção pode competir com a realidade, se Donald Trump é presidente dos Estados Unidos?

Arthur é um palhaço que ganha a vida segurando cartazes e tropeçando nos próprios sapatões nas ruas de Gotham, que tem como base a cidade americana de Nova York nas histórias da DC Comics. Estamos nos anos 1980, a criminalidade avança, uma greve acumula lixo e os ratos proliferam. Nesse quadro, e ao reagir com violência num incidente no metrô, Arthur vai terminar dando vazão à violência reprimida da massa. O filme tem algo de Watchmen, de Zach Snyder, que também está completando dez anos. É crítico ou conivente com esse direitismo desenfreado que avança pelo mundo? No mundo que cultua o vilão, Bruce Wayne ainda é só uma criança. Um herói para o futuro? Possesso - possuído? -, Coringa surge nos anos 1980, com o neoliberalismo. Os recados estão todos dados.

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