Ao conquistar 13 indicações para o Oscar 2025, Emilia Pérez fez história. O longa-metragem francês, falado em espanhol e ambientado no México, quebrou o recorde de nomeações para um filme não falado em inglês e consolidou sua potência, construída gradualmente desde maio do ano passado, quando foi premiado no Festival de Cinema de Cannes e teve os direitos comprados pela Netflix por cerca de U$ 12 milhões.
A película, no entanto, se viu envolta em polêmicas poucos dias depois das indicações ao Oscar e também da vinda do diretor Jacques Audiard e de sua protagonista, Karla Sofía Gascón, ao Brasil. A atriz causou alvoroço nas redes sociais após escrever um comentário que comparava as críticas ao filme com o Holocausto. Depois, foi divulgada uma entrevista na qual ela acusava a equipe de Fernanda Torres, sua rival na disputa pelo Oscar, de coordenar ataques contra ela. Na última quinta-feira, 30, usuários resgataram posts antigos da atriz com comentários controversos, sobre temas como islamismo, a pandemia da covid-19 e o assassinato de George Floyd. Diante da repercussão negativa, ela desativou seu perfil no X (antigo Twitter) na manhã desta sexta-feira, 31.
O Estadão entrevistou Karla Sofía Gascón e Jacques Audiard no último dia 21, antes de tais controvérsias ganharem as redes sociais, mas questionou ambos sobre outras questões, como a representação de mexicanos e pessoas trans no projeto. Parte da conversa pode ser vista no vídeo acima e, de forma mais aprofundada, no texto abaixo.

‘Emilia Pérez é como caipirinha’
Misturando elementos de musicais, telenovelas, thrillers de narcotráfico, entre outros gêneros, a história de Emilia Pérez trata de temas sensíveis ao acompanhar Rita (Zoe Saldaña), advogada de um grande escritório que recebe uma inesperada proposta: o líder de um temido cartel, Manitas (Karla Sofía Gascón), a contrata para ajudá-lo a se retirar de seu negócio e realizar um plano que vem preparando secretamente há anos: tornar-se a mulher que ele sempre sonhou ser. Ainda estão no elenco, em papéis secundários, Edgar Ramírez e a estrela Selena Gomez.
O francês Jacques Audiard, veterano de filmes como O Profeta (2009), Deephan (2015) e The Sisters Brothers (2018), contou ao Estadão que a trama foi inspirada em um personagem não desenvolvido do livro Écoute, de Boris Razon.

“O primeiro texto que eu escrevi foi bem curto, é um libreto de ópera, dividido em atos, com personagens bastante arquetípicos. Foi assim que tudo começou, mas demorou. Por muito tempo foi uma ópera. Enquanto escrevíamos as canções, decidimos que tínhamos que trabalhar para o cinema, porque se tivéssemos feito a ópera, seriam necessárias mais duas horas de música para compor”, explicou Audiard, em um hotel de São Paulo, onde promoveu o novo trabalho, que estreia nos cinemas nacionais em 6 de fevereiro.
“Emilia Pérez é como uma caipirinha. Você não sabe se é amarga, doce, se tem gosto de limão, se tem gás ou não, é indescritível. Jacques queria que fosse praticamente como a A Bela e a Fera, onde um personagem muito obscuro tem que sair de um mundo escuro e se converte em luz”, diz Karla Sofia Gáscon, espanhola de 52 anos, fã de Pelé, que se tornou a primeira atriz trans indicada ao Oscar de Melhor Atriz.
Karla ficou conhecida por seu trabalho em telenovelas mexicanas como Senhor dos Céus e Llena de Amor, mas o papel neste filme é sem dúvidas o de maior destaque em sua carreira. “Me sinto como os Tribalistas”, brincou, antes de cantar o refrão do hit Já Sei Namorar. “Estou apaixonada por tudo o que está acontecendo com Emilia Pérez. Acredito que as indicações e os prêmios vêm de um trabalho perfeitamente construído. Tenho a oportunidade de dar a minha contribuição para que muitas pessoas se sintam representadas e não continuem sofrendo. É um sinal de mudança na arte”, complementou.
O fascínio por protagonistas imperfeitos é um aspecto recorrente na filmografia de Audiard. Neste caso, temos as obscuridades em torno de Emilia, que mesmo após realizar a transição de gênero continua a carregar traços da agressividade de Manitas – dualidade que formatou uma figura rara nas narrativas cinematográficas contemporâneas. “Não tenho nada contra a indústria do cinema, mas tenho tendência a ter personagens cujo destino seja o mais complexo possível, que comecem de longe, seja socialmente ou intelectualmente. Assim eles fazem trajetórias importantes”, explicou o cineasta de 72 anos.

Controvérsias
Emilia Pérez não foi tão bem aceito pelo público como foi pela crítica. As principais controvérsias envolvem acusações de apropriação cultural, transfobia e estereótipos dos mexicanos. Isso se refletiu em plataformas populares como o Letterboxd, onde o filme recebeu uma média de notas baixíssima.
De quebra, a Procuradoria Federal do Consumidor do México (Profeco, espécie de Procon) pediu explicações à rede de cinemas Cinépolis após consumidores abandonarem sessões do longa e solicitarem reembolso por insatisfação com o conteúdo apresentado.
“Essa polarização, para mim, significa 99,99% de pessoas que gostaram do filme e 1% de pessoas que dizem que não gostaram. O que eu vivenciei pessoalmente foram só elogios, coisas maravilhosas. Não posso prestar atenção ao que acontece nas redes sociais, pois elas não têm nenhum tipo de credibilidade”, analisou Karla.
“Me incomoda ter que lidar com isso [as críticas]. Eu queria falar sobre o problema do desaparecimento das pessoas no México. Esse problema me afetou, talvez porque onde eu moro, na França, não falamos sobre isso, não interessa a ninguém”, disse Audiard, antes de mostrar ao repórter do Estadão, pelo celular, a notícia sobre o decreto assinado pelo presidente americano Donald Trump de que apenas os gêneros masculino e feminino serão reconhecidos pelo governo dos EUA. “Tentamos trabalhar por causa disso”, acrescentou.
Nesse sentido, a atriz e o cineasta também afirmaram que existe patrulha ideológica em torno da arte. “Há pessoas que acham que a arte é algo que deve ser restringido ao que cada um acha ou fala. É como se eu te dissesse que você, por não ser florista, não pode pintar um quadro de flores. É uma bobagem. A arte é livre e todos temos essa liberdade”, disse Karla, corroborada por Audiard. “Com certeza [há patrulha]. As redes sociais não fabricam ideias ou reflexões, elas fabricam opiniões”, pontuou ele.

Emilia versus Eunice
No Brasil, há ainda outro fator que tem despertado antipatia de parte da população contra o filme antes mesmo da estreia. A disputa com Ainda Estou Aqui nas premiações cinematográficas tem sido cada vez mais acirrada. No Oscar, ambos concorrem contra si nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz.
“A competição é um pouco como um concurso de beleza. Não sabemos quem será a mais bonita hoje. Há um lado desagradável, são como cavalos de corrida, mas, por outro lado, se realmente nos incomoda, não deveríamos fazer esse trabalho, porque o cinema é uma indústria”, comentou Audiard, revelando ser um admirador da obra de Walter Salles.
Por conta da rivalidade entre os filmes, a atriz Fernanda Torres chegou a sair em defesa de Karla Sofía Gascón após a espanhola ser alvos de ataques brasileiros na internet. “Não vamos tratar ninguém mal e criar uma coisa de um contra o outro, pelo amor de Deus. Não vamos alimentar ódios, ok?”, pediu Fernanda em vídeo postado nas redes sociais, no qual destacou a amizade que possui com a colega. Dias depois, uma outra fala dela, acusando a equipe de Fernanda Torres de falar mal dela e do filme, viralizou.
Ao Estadão, Karla fez questão de elogiar a película brasileira, bem como a intérprete de Eunice Paiva. “Para mim não é uma competição. Conheço a Fernanda, desejo a ela tudo de melhor. Realmente acredito que é maravilhoso o que eles fizeram, mas o nosso também acho que é. O que um tem não tira o do outro. Meus respeitos para Fernanda, espero que ela ganhe todas as coisas deste mundo. Mas Emilia Pérez é Emilia Pérez”.