Em 2021, The Beatles: Get Back, a imensa e vibrante série documental do diretor Peter Jackson, estreou no Disney+ e conquistou aclamação universal. Com três partes e quase oito horas de duração, o épico capturava todo o furor e o drama de quando John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr gravaram, ao longo do atribulado mês de janeiro de 1969, aquele que se tornaria o último álbum lançado pelos Beatles, Let It Be.
Como os fãs já sabiam, a série de Jackson vinha de quase 60 horas de filmagens de bastidores feitas pelo diretor Michael Lindsay-Hogg para Let It Be, seu documentário de 1970 sobre as sessões de gravação – documentário pouco visto e muitas vezes desprezado.
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Depois da primeira temporada nos cinemas, o filme de Lindsay-Hogg desapareceu por mais de meio século, exceto por versões em VHS de baixa qualidade ou piratas. Os fãs tendem a se lembrar dele como um intrigante documento histórico que capta os voos criativos da fase final como uma força sísmica, mas também como uma espécie de processo de divórcio, com momentos de graves discórdias internas à medida que a banda se aproximava de uma separação nada amigável.
Por esse ponto de vista, Get Back, com seus muitos momentos de brincadeiras e palhaçadas no set, foi visto por alguns como uma correção tardia para Let It Be.
Não é de surpreender que Lindsay-Hogg, 83 anos, tenha uma visão muito diferente. O aclamado diretor foi um dos responsáveis pela invenção do videoclipe – com seus filmes promocionais para os Beatles e os Rolling Stones em meados da década de 1960 – e ganhou elogios pela minissérie britânica Memórias de Brideshead (1981). Ele passou meio século lutando para que Let It Be tivesse uma segunda chance e, na sua opinião, um tratamento justo.
Neste 8 de maio, ele terá seu desejo atendido: Let It Be, meticulosamente restaurado pela equipe de produção de Jackson, vai ao ar no Disney+, em colaboração com a Apple Corps, empresa que supervisiona os interesses criativos e comerciais dos Beatles. Lindsay-Hogg conversou com o New York Times sobre o ponto culminante de uma longa cruzada. Aqui vão trechos editados da conversa.
Você vem trabalhando há décadas para ressuscitar ‘Let It Be’. O que finalmente mudou?
Peter foi o catalisador. Ele e eu nos encontramos em dezembro de 2018, antes de ele começar a trabalhar para valer em Get Back, e ele disse: “Me conte a história de Let It Be – você sabe, tudo o que aconteceu desde as filmagens, porque assisti ao filme esses dias e acho que deveria ser relançado”. Aí se passaram uns dois anos e ele me disse que tinha uma relação muito boa com Paul e Ringo e também com Sean Lennon e Olivia Harrison, a viúva de George, além de Jonathan Clyde, que produziu Get Back para a Apple. Então ele começou a defender o relançamento de Let It Be. Ele e Clyde conseguiram um orçamento para a restauração e, aos poucos, a Apple foi fazendo o trabalho.
‘Let It Be’ é só uma versão mais curta de ‘Get Back’?
Peter não queria que parecesse que Get Back tinha sido tirado de Let It Be, então, quando ele queria mostrar uma cena que estava no meu filme, ele a mostrava de ângulos diferentes e construía as coisas de um jeito diferente. Let It Be tem cenas que não estão em Get Back. Os filmes são muito diferentes, embora tenham muitas semelhanças, claro.
Muitas pessoas se lembram de ‘Let It Be’ como um filme que tem uma atmosfera pesada, provavelmente por causa daquela famosa cena em que George e Paul discutem sobre a guitarra de George em ‘Two of Us’. Essa troca foi mais um sinal do começo do fim?
Ninguém nunca tinha visto os Beatles brigarem, mas não foi uma briga para valer. Até ali, ninguém nunca tinha filmado os ensaios dos Beatles, a não ser um trecho ou outro. Então era um território novo. Aquela troca entre Paul e George, eles nunca nem comentaram, porque qualquer artista colaborando com outro tem conversas desse tipo. Como diretor de teatro e cinema, sei que esse tipo de conversa acontece todo dia.
Quando ‘Get Back’ foi lançado, muitos fãs o viram como correção bem-vinda para ‘Let It Be’. É uma opinião correta?
Eu diria que as pessoas que viram o filme do Peter como uma correção para o meu filme não viram o meu filme, porque ninguém pôde vê-lo por 50 anos. Então, a menos que fossem crianças quando o viram nos cinemas, a única maneira de vê-lo seria em VHS ou versões piratas, que mudaram a proporção original e tinham imagens escuras e som ruim. Foi também por isso que o filme ficou tanto tempo guardado na gaveta.
A restauração digital mudou muito a imagem e o som de ‘Let It Be’'?
Quando Peter me mostrou algumas imagens restauradas do filme, uma delas era dos rapazes vistos de costas, e os cabelos deles pareciam muito desgrenhados no original. Então ele disse: “Agora vou mostrar no que estamos trabalhando”. Era a mesma imagem, mas dava para ver cada fio de cabelo. É uma versão do século 21 de um filme do século 20. Com certeza é mais vivo e brilhante do que o que acabou no vídeo. Agora parece que foi algo feito para parecer de 1969 ou 1970, embora, a meu pedido, Peter tenha dado uma aparência mais cinematográfica do que Get Back, que parece um pouco mais moderno e digital.
Os quatro Beatles não foram à estreia de ‘Let It Be’ em 1970. Foi em protesto?
Como sabemos agora, os Beatles já estavam em processo de separação quando o filme ficou pronto para ser lançado. Talvez estivessem com rancor um dos outros, não estavam se dando bem. Eles anunciaram a separação em abril de 1970, e Let It Be foi lançado em maio. Let It Be foi um dano colateral. As pessoas não o viram pelo que era, elas só quiseram ver o que o filme não era.
Recentemente, em 2021, Ringo disse que o filme ‘não tinha alegria’. Os integrantes da banda ficaram insatisfeitos com o filme na época?
Bem, depois que assistimos à versão preliminar, em julho, um dia antes de Neil Armstrong pousar na Lua, John e Yoko [Ono], Paul e Linda McCartney, Peter Brown, da Apple, eu e minha namorada saímos para jantar no Provans, em Londres. O filme, creio eu, foi visto como um trabalho ainda inacabado, mas promissor. Ninguém fez crítica, nem piada. Nós sentamos e nos divertimos como bons amigos. Falamos sobre nossas infâncias, tomamos umas garrafas de vinho. Quando mostramos o corte final, no fim de novembro, saímos para jantar de novo, num lugar que tinha uma pista de dança. Todos tomamos umas e conversamos muito, e Paul disse que achava que o filme era bom. Ringo ficou dançando. Ele dança muito bem.
Depois de 54 anos, o senhor acha que os fãs terão uma percepção diferente do filme?
Se você olhar sem preconceito, o filme funciona muito bem, e fica claro que você está vendo quatro homens que se conhecem desde a adolescência – bem, três deles, pelo menos – e que se amam como irmãos. Mas eles não eram mais os Fab Four. Alguns deles estavam chegando nos trinta. Eles tinham parado de fazer turnês, o que é uma grande mudança para um grupo de rock. O que você vê no filme é um carinho eterno entre os quatro. Mas eles estavam vivendo vidas muito diferentes naquele momento.
Durante as filmagens, você teve a sensação de que eles estavam prestes a terminar?
Não, de jeito nenhum. Começamos a filmar com quatro Beatles. E terminamos com quatro Beatles. Não era uma coisa prestes a rachar. Achei que eles iriam sair e fazer suas coisas, seguir cada um seu coração e lançar seu álbum, mas que depois eles voltariam a trabalhar juntos, porque os Beatles eram uma força artística muito poderosa – e uma força social também. Não imaginei que os Beatles iriam se separar até que eles se separaram.
Até mesmo os críticos de ‘Let It Be’ teriam dificuldade de dizer que o último show ao vivo, no telhado da Apple Corps, não foi um momento de alegria.
Que sorte que a última fala do filme seja de John, lá em cima no telhado. O set foi desmantelado pela polícia – o que foi bom, porque eles não tinham ensaiado outras músicas – e aí John diz: “Tomara que a gente tenha passado no teste”. Porque se alguém passou no teste, naquela década inteira, foram os Beatles. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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