Cidadão Kane lançou uma vasta sombra cinematográfica por quase oito décadas, ocupando o topo de inúmeras listas dos melhores filmes já feitos. Mas, por alguma razão, ganhou apenas um único Oscar.
Embora a estreia de Orson Welles como diretor tenha sido surpreendentemente curta na cerimônia do Oscar de 1942, na qual Como Era Verde o Meu Vale de John Ford levou os troféus de melhor filme e melhor diretor, a única coisa pela qual Cidadão Kane foi reconhecido - seu roteiro - é o tema do novo filme luxuoso da Netflix Mank, dirigido por David Fincher.
Será que Mank conseguirá o que Cidadão Kane não conseguiu e ganhará os dois principais Oscars? Em uma temporada de premiações reduzidas devido a uma pandemia, ele parece ter grande potencial para abocanhar prêmios.
Previsto para estrear em 4 de dezembro na Netflix após um lançamento limitado no cinema no dia 13 de novembro, Mank conta a história do roteirista de Hollywood Herman Mankiewicz (Gary Oldman), que foi incumbido pelo prodígio Welles de criar Cidadão Kane. Para Mankiewicz, aceitar este trabalho de roteiro envolverá perder algumas conexões, já que Kane é uma visão velada do empresário William Randolph Hearst, que Mankiewicz conhece muito bem.
Como o filme conta, anos antes, Mankiewicz era um habitué das festas de Hearst, onde o roteirista brandia comentários inteligentes e forjava uma conexão com Marion Davies (Amanda Seyfried), a amante muito mais jovem de Hearst. Mas a bebida e a desilusão fizeram com que Mankiewicz perdesse a aprovação de Hearst - e em Hollywood também. Ele pode se redimir capitalizando a oferta de Welles e escrevendo seu maior trabalho?
Apesar de sua única vitória, Cidadão Kane ainda conseguiu nove indicações ao Oscar, e eu esperaria pelo menos o mesmo número para Mank. Em um ano sem grandes filmes de ação e lançamentos de sucesso, Mank tem a oportunidade de uma ampla vitória nas categorias técnicas, conquistando prêmios para seu design de produção de alta qualidade, edição e figurinos.
Depois de filmar episódios da série de Fincher Mindhunter na Netflix, o diretor de fotografia Erik Messerschmidt triunfou em sua primeira disputa ao Oscar pela suntuosa fotografia em preto e branco que relembra a época de ouro de Hollywood. (O último filme em preto e branco a vencer na categoria foi outro concorrente da Netflix, Roma, em 2019.) E o som monoaural evocativo da época também pode atrair a atenção do Oscar, assim como a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross, embora a dupla provavelmente vá competir contra seu próprio trabalho pela música de Soul da Pixar.
O pai de Fincher, Jack, escreveu o roteiro de Mank, mas morreu em 2003, muito antes de seu filho finalmente montar o filme. Será o único crédito do Fincher mais velho na tela, e com seus gracejos de ponta a ponta, é uma aposta certa para garantir a ele uma indicação póstuma ao Oscar.
A disputa pelo prêmio de melhor ator está repleta de atuações importantes este ano, desde o último papel de Chadwick Boseman, em A Voz Suprema do Blues, até o trabalho arrasador de Anthony Hopkins no drama de demência The Father. No entanto, espera-se que Oldman, vencedor da categoria em 2018 por dar vida a Churchill em O Destino de Uma Nação, esteja entre os indicados novamente. Estou mais animado com o reconhecimento pela primeira vez na categoria de atriz coadjuvante para Amanda Seyfried, que é surpreendentemente sagaz como Davies.
Com todo aquele vento a seu favor em outras disputas, Mank é uma certeza entre as nomeações nas categorias de melhor filme e melhor diretor. Poderá vencer um dos dois ou mesmo os dois? A disputa entre diretores parece mais favorável para Fincher, um dos diretores mais conceituados de Hollywood que foi indicado duas vezes antes - por A Rede Social e O Curioso Caso de Benjamin Button - mas nunca ganhou.
Um filme luxuoso ambientado em seu próprio quintal pareceria a escolha certa para fazer os eleitores do Oscar terminarem a premiação, embora o assunto de olhar para o próprio umbigo não seja mais uma garantia: Recentes candidatos a melhor filme sobre o show business, como Era uma vez em... Hollywood, de Quentin Tarantino e Nasce uma Estrela de Bradley Cooper, entretanto, foram ignorados nos minutos finais do Oscar.
Dito isso, a disputa pelo prêmio de melhor diretor geralmente tende a recompensar o feito mais tecnicamente realizado, e Mank é um trabalho de autor reluzente e caro de um diretor extremamente exigente. A menos que a academia favoreça algo menor este ano - digamos, o mais íntimo e livre Nomadland de Chloé Zhao - parece que Fincher tem fortes chances.
No ano passado, Roma de Alfonso Cuarón ganhou a disputa pelo prêmio de melhor diretor, além do Oscar de melhor fotografia e filme em língua estrangeira, mas ainda assim perdeu para Green Book: O Guia na categoria de melhor filme. Muitos creditaram essa vitória a um posicionamento contra as plataformas de streaming dentro da academia, mas as opiniões mudaram o suficiente nesse ínterim para permitir que Mank dê a Netflix seu primeiro Oscar de melhor filme?
Aqueles mais resistentes podem não ter outra escolha. Embora a maioria dos estúdios esteja se arriscando menos nesta temporada com um único candidato na disputa, a Netflix está bem abastecida com opções este ano, incluindo Destacamento Blood de Spike Lee, Os 7 de Chicago de Aaron Sorkin e A Voz Suprema do Blues,de George C. Wolfe; além de títulos como Era Uma Vez Um Sonho de Ron Howard e O Céu da Meia-Noite de George Clooney.
É possível que a maioria dos indicados em todas as seis principais categorias - as quatro disputas por atuação, bem como diretor e filme - possam vir apenas da Netflix. Em uma temporada em que poucos integrantes da academia provavelmente colocarão os pés em um cinema, faria sentido que um serviço de streaming finalmente triunfasse.
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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