Marcélia Cartaxo revive ‘A Hora da Estrela’, que volta ao cinema: ‘Muitas memórias, algumas doídas’

Quatro décadas depois, atriz reencontra Macabéa, seu primeiro grande papel, e reflete sobre a passagem do tempo em conversa com o ‘Estadão’. Filme de Suzana Amaral inspirado na obra de Clarice Lispector foi restaurado e estreia nesta quinta, 16

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Foto do author Julia Queiroz
Atualização:

Nos bastidores do filme A Hora da Estrela, adaptação do livro de Clarice Lispector (1920-1977) de 1985, a diretora Suzana Amaral (1932-2020) pedia que a atriz Marcélia Cartaxo, entre as filmagens, sentasse em uma cadeira virada para uma parede e ficasse ali, encarando o nada. Fora do set, ela queria que a artista evitasse sair à noite, que ficasse sozinha, concentrada em sua personagem.

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Macabéa, a protagonista da história, era o primeiro grande papel de Marcélia e, de muitas formas, um espelho dela própria: uma jovem nordestina que saiu de uma cidadezinha para se arriscar na metrópole. Ela não entendia por que Suzana queria que ela ficasse ali isolada. “Tenho muitas lembranças, algumas doídas”, confessa, aos 60 anos, ao Estadão.

A Hora da Estrela foi lançado e virou um sucesso de público e crítica. Quando Marcélia percebeu, ela, que tinha 22 anos e só havia trabalhado com teatro, estava no Festival de Cinema de Berlim recebendo o Urso de Prata de melhor atriz. Ela, então, entendeu: “[A Suzana] me deu um caminho para que eu não me perdesse. A concentração, a observação, a memória corpórea, a caracterização, o ritmo. Ela queria que tivesse tudo ali, cena por cena, e queria que ninguém, nem nada, maculasse aquilo.”

A atriz Marcélia Cartaxo, aos 60 anos, reencontra a sua Macabéa no relançamento de 'A Hora da Estrela' nos cinemas.  Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Quase quatro décadas depois, ela recebeu uma ligação da produtora Vitrine Filmes com uma novidade: A Hora da Estrela seria relançado nos cinemas por meio da Sessão Vitrine Petrobras, projeto de distribuição coletiva de filmes brasileiros. A nova versão do longa, restaurada em 4k a partir do negativo original, estreia nesta quinta-feira, 16.

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“Sinto como se fosse a primeira vez”, diz Marcélia. “Fazer todo esse tratamento é necessário para que a gente não perca a memória, a história da Suzana, esse trabalho da Clarice Lispector, que é uma autora extremamente importante, principalmente para nós mulheres”. É uma forma de preservação e, além de tudo, uma oportunidade para que gerações que talvez não tenham tido contato com o filme o assistam pela primeira vez.

A Macabéa de Marcélia

“É a história de uma moça tão pobre que só comia cachorro-quente. Mas ela não é isso só. Ela é de uma inocência pisada, de uma miséria anônima”. Foi assim que Clarice descreveu A Hora da Estrela em sua famosa última entrevista, ao programa Panorama, da TV Cultura, em 1977.

Macabéa, órfã, se muda para o Rio de Janeiro depois da morte de sua tia e arranja um trabalho como datilógrafa. Depois, começa a namorar Olímpico de Jesus, também vindo do Nordeste, que almeja virar deputado e que a destrata de diversas maneiras, sem que a própria Macabéa se dê conta. Para Marcélia, é a uma história que faz parte da nossa sociedade.

“[Mostra] a fragilidade da mulher em todos os sentidos: no trabalho, na relação com as pessoas, na sua relação até em casa. Clarice abriu os nossos olhos com relação a muitas camadas e, principalmente, com relação ao jeito com que pensamos em nós mesmos. Ela deu esse presente. Quando eu leio os livros dela, é como se eu estivesse escrevendo para mim mesma.”

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Clarice nunca chegou a ver sua obra nas telas - morreu pouco tempo depois da publicação do livro, em 1977, por conta de um câncer de ovário. Consequentemente, não viu a maior mudança que Suzana Amaral fez em sua história: a retirada do narrador homem, Rodrigo, que conta (e opina sobre) a história de Macabéa.

Marcélia Cartaxo como Macabéa em 'A Hora da Estrela', de 1985. O filme foi restaurado e digitalizado para o relançamento. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

“A Suzana Amaral foi direta. Ela já disse: não, vamos botar a história da Macabéa de cara e ela vai ser a protagonista disso tudo. Eu achei incrível o caminho que ela encontrou”, diz Marcélia. “A história da Macabéa tem que ser contada por mulher mesmo. Suzana assumiu isso, fez do jeito dela e deu certo.”

Marcélia se via muito em Macabéa naquele período. Hoje, a atriz tem menos da personagem do que tinha há 40 anos: “Com o tempo, nós vamos nos fortalecendo, ficando mais fortes, aprendendo, apanhando, nos levantando e vendo que temos o próprio caminho”.

‘Só quero saber de ser feliz’

Não é que foi fácil chegar neste lugar de confiança. A Hora da Estrela “foi o passaporte para a minha carreira, para a minha escolha de vida, para ser atriz que eu sou hoje”, diz Marcélia. No entanto, por muito tempo, as oportunidades simplesmente não apareciam.

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“Foi só de uns 20 anos para cá, depois de Madame Satã [filme de Karim Aïnouz, de 2002], que as coisas começaram a se abrir, que os diretores pudessem me enxergar de outra forma que fosse aquela Macabéiazinha nordestina, aquela mulher chorosa, triste, ou até, socialmente, uma mulher que vem lá do nordeste, uma empregada, ou algo assim”, explica.

No início dos anos 2000, ela voltou a morar em João Pessoa, na Paraíba, seu estado natal. Resolveu “colocar a mão na massa”, como diz, para que pudesse ter maior acesso aos trabalhos que queria: “Vou aprender, vou estudar, vou dirigir e começar a escrever personagens que eu gostaria de fazer. Dirigi três curtas-metragens e continuo me preparando para poder, no futuro, fazer um longa do meu jeito.”

Marcélia Cartaxo confessa que os anos após 'A Hora da Estrela' não foram fáceis e que demorou a conseguir bons papéis no cinema. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Depois da pandemia e de anos difíceis para o cinema nacional, Marcélia se vê esperançosa com o cenário atual: “Antigamente, era só São Paulo e Rio de Janeiro que podiam usufruir dessa história do cinema, do fazer cinema. Hoje, não. Todo mundo tem acesso e a gente pode conhecer as histórias de muitos outros lugares do nosso Brasil.”

Revisitar Macabéa é, também, uma forma de lembrar quanta coisa mudou - e tudo o que foi aprendido. O tempo ensinou a Marcélia que nós precisamos aproveitar o momento, e não nos perdermos com aquilo que não importa para nós.

“Quando abrimos os olhos, passaram 40 anos. Acho que temos que desacelerar um pouco e começar realmente a aproveitar e degustar a vida em todos os sentidos. No campo, em casa, na natureza, o que comemos, o que bebemos. As pessoas, o amor, a amizade. Eu acho a vida muito incrível. Eu vou aproveitá-la. Não quero saber de briga e confusão. Só quero saber de ser feliz e de estar bem”, diz ela.

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