Havia espectadores, cinéfilos, que esperavam há décadas pelo reencontro de Robert De Niro e Al Pacino. Estiveram juntos em O Poderoso Chefão 2, de Francis Ford Coppola. Coestrelaram Heat/Fogo Contra Fogo, thriller de Michael Mann, de 1995, que se tornou objeto de culto. Martin Scorsese considera-o um dos grandes filmes de “cops and robbers” da história de Hollywood. Foi há 20 anos. Naquela época, o início dos anos 1990, Scorsese fizera seus últimos grandes filmes – coincidentemente obras sobre a máfia. Os Bons Companheiros/Goodfellas e Cassino, ambos com De Niro e Joe Pesci. Estão agora todos de volta – Scorsese e seus atores, De Niro, Pesci, Pacino. Todos velhos – mais velhos. O dado não é irrelevante. O Irlandês começa num retiro para aposentados. A câmera vaga pelos corredores até chegar a De Niro, que vai contar a sua história.
Ele é o homem que pintava paredes. Na terminologia da máfia, trata-se de um “sinônimo” de assassino profissional. De Niro explodia cabeças com tiros à queima-roupa e “pintava paredes” com o sangue que esguichava. O Irlandês estreia nesta quinta, 14, em 19 salas selecionadas de todo o País. A produção da Netflix estreia nos cinemas antes de chegar à plataforma de streaming, na sexta da próxima semana, dia 22. Dessa forma, cumpre o rito, do lançamento nas salas, para habilitar-se a concorrer ao Oscar.
Foi-se o tempo da queda de braço entre a Netflix e a Academia, ou grandes festivais como Cannes. Prêmios em festivais agregam prestígio. E a Netflix, a Amazon e outras querem desfrutar dessa fatia. Para diretores como Scorsese, e o brasileiro Fernando Meirelles, que lança no mês que vem, também pela plataforma, Dois Papas, é como um sonho. Liberdade de criação, festivais, cinemas e depois o streaming, essa nova modalidade que está revolucionando o mercado. Num recente debate em Hollywood – com Scorsese e Meirelles, entre outros –, a conclusão é que não há mais o que discutir. As novas tecnologias, o mercado, enfim, tudo mudou. Agora é assim.
Máfia
No filme, o velho de O Irlandês volta-se para o próprio passado. Faz uma viagem de carro com o personagem de Pesci. Dois velhos e suas mulheres. Na primeira parada (“Olhe ali”), vem a lembrança do primeiro encontro. Como tudo começou. Steve Zaillian assina o roteiro. Foi o roteirista vencedor do Oscar por A Lista de Schindler, de Steven Spielberg. Para o novo filme, baseou-se no livro de Charles Brandt, I Heard You Paint Houses, com as memórias de Frank Sheeran, o personagem de De Niro.
Historiadores de crimes nos EUA dizem que o livro não é confiável e que Sheeran é um mitômano. Mas a história é boa e, como dizia o mestre John Ford por meio do editor Edmund O’Brien de O Homem Que Matou o Facínora, às vezes é melhor imprimir a lenda. No centro do filme está um enigma: o desaparecimento de Jimmy Hoffa, o todo-poderoso presidente do sindicato dos caminheiros. Pacino é quem faz o papel.
São todos amigos: Frank, Jimmy, Russell Bufalino (Pesci). Amigos, amigos, negócios à parte, como diria Billy Wilder. Hoffa prejudica negócios do crime organizado. Torna-se uma ameaça que é preciso eliminar. Impossível, diz Frank – ele é o segundo homem mais poderoso dos EUA, após o presidente. Russ/Pesci acha que nada é impossível, afinal, o próprio John Fitzgerald Kennedy foi vítima daqueles tiros em Dallas, em 22 de novembro de 1963.
Esse filme sobre velhos, que se reúnem para validar e executar assassinatos, é sobre poder e dinheiro, amizade e lealdade. Alguém, o próprio Scorsese, ou Zaillian, já disse que é sobre laços dissolvendo-se na longa noite das almas, quando ocorrem todas as traições.
Parceria
É o nono filme de Scorsese com De Niro, uma parceria que começou há muito tempo, nos anos 1970, e antes disso já vinha selada pela amizade. Você pode até achar que é brincadeira, mas tem havido, ultimamente, ciumeira. Scorsese substituiu De Niro por Leonardo DiCaprio e ganhou o Oscar – de filme e direção – por Os Infiltrados, mas, embora essa seja uma afirmação polêmica, só um louco pode achar que a fase DiCaprio é tão boa. Não é, e Scorsese há tempos deve a seu público um grande filme. Antes de ser um grande filme, O Irlandês é um filme grande até na duração (3h30).
O terço final, de uma hora inteira, é destinado a deslindar o affair Jimmy Hoffa. Sendo um filme de velhos, é bom que o espectador preste atenção no processo de envelhecimento de Niro, Pesci e Pacino, e inversamente no rejuvenescimento do trio – e também de Harvey Keitel, que tem um papel importante no longa.
Aliás, são tantos velhos em cena que, com todo respeito, a impressão, lá pelas tantas, é de que Scorsese liberou o asilo, fornecendo papéis a veteranos atores coadjuvantes que você nem sabia mais que estavam vivos. Trabalhando há tanto tempo juntos, chega a ser surpreendente que Scorsese – mas ele é cinéfilo, não se esqueçam – tenha pautado De Niro a fazer sua lição de casa. Ele exortou o ator a rever clássicos de gângsteres com o astro francês Jean Gabin, porque era aquele tom de interpretação que queria. Isso talvez ajude a entender por que O Irlandês é mais meditativo que os demais filmes de gângsteres do diretor, um pouco mais próximo de seus filmes religiosos (que, a bem da verdade, estão longe de ser os melhores). Olha o spoiler: a grande cena ocorre aos 45 do segundo tempo. O encontro de Frank com a filha. Tudo em O Irlandês leva até ali.
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