Maurício Kubrusly é tema do documentário Kubrusly: Mistério Sempre há de Pintar Por aí, disponível no Globoplay. Com direção de Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, o filme mostra a rotina atual do repórter de 79 anos que vive com demência frontotemporal (DFT), doença degenerativa que afeta linguagem, memória e comportamento.
Para quem se lembra de Kubrusly a partir dos anos 2000, ele é o repórter irreverente do quadro Me Leva Brasil, do programa Fantástico, da TV Globo, que percorria o Brasil atrás de boas histórias e grandes personagens populares - foram quase 17 anos no ar e cerca de 300 reportagens. Ele só parou quando conseguiu visitar todos os estados do País.
Antes disso, no entanto, Kubrusly era o jornalista de cultura, editor da Revista Somtrês, a primeira no Brasil destinada ao público da música, nos anos 1970 1980. Era também o repórter que subia ao palco com os artistas para sentir a arte de perto e que arrancou da cantora Elis Regina (1945-1982), em sua última entrevista na TV, que ela não era mais “careta”. Na rádio Excelsior, Kubrusly ouviu todo o arquivo da emissora e indicou o que devia ou não tocar.
Foi justamente pelo caminho da música que os diretores Caio Cavechini e Evelyn Kuriki conseguiram acessar o Kubrusly de 2024. Além de algumas canções - ou trechos delas - Kubrusly se lembra da engenheira Beatriz Goulart, sua mulher há cerca de 20 anos, com quem vive em uma comunidade à beira mar no Sul da Bahia. “Bia”, ele a chama, sempre que precisa de algo. Ela, sempre presente, organiza os pensamentos e reapresenta o mundo a ele a cada instante - e coloca músicas para ele escutar.
Em uma das cenas, Kubrusly, ao ouvir a gravação de Gilberto Gil para Esotérico, se encanta com os versos ‘mistério sempre há de pintar por aí”. “Olha que maravilha isso!”, exclama, como se fizesse a primeira audição da canção. O doc o coloca frente a frente com Gil. Bia novamente está lá com ele. “Aconteceu algo chato com a gente”, ela diz a Gil, ao explicar que Kubrusly perdeu, há algum tempo, a capacidade da leitura. Cumplicidade total.
Em entrevista ao Estadão, Evelyn, que trabalhou com Kubrusly no Fantástico - ela também assina o roteiro do documentário -, e Cavechini, que faz parte do núcleo de documentários da Globo, contaram como foi acessar esse mundo tão particular do repórter e das reflexões que o filme traz a partir de um história de dor, mas também de muita poesia, como é possível notar ao longo dos cerca de 90 minutos do projeto.
“Não queríamos construir uma experiência em que o público atropelasse as portas daquela casa, mas sim que pudesse experimentar, com calma, detalhes de uma convivência tão rica em significado”, afirma Cavechini, conhecido pelo grande público por seu trabalho no programa Profissão Repórter.
Como foi negociar ou convencer Beatriz a fazer o documentário? Penso que talvez Kubrusly não pôde decidir por ele. Ela, sendo zelosa do jeito que demonstra, deve ter analisado muito bem. Enfim, como foi esse processo e em que denominador chegaram de que seria algo positivo.
Evelyn: Trabalhei no Fantástico com Kubrusly por quase 15 anos e mantive contato esporádico com a Beatriz. Depois da saída dele, ela sempre me atualizava do estado de saúde do Kubrusly - e, claro, havia uma confiança no nosso trabalho. Havia também um desejo, por parte dela, de que a mensagem de cuidado e acolhimento pudesse iluminar famílias em situação semelhante. Mesmo assim, combinamos que iríamos sentir dia a dia como seria a recepção do Kubrusly a uma câmera dentro de casa: ainda que não conseguisse verbalizar, Beatriz nos garantiu que ele seria muito franco para demonstrar qualquer incômodo conosco. Fomos muito bem recebidos por ele desde o primeiro dia, e isso foi fundamental para que o projeto evoluísse até se tornar esse filme.
O documentário passa longe do sensacionalismo. Como se afastar disso diante de um personagem que o público já sabia estar doente e, inevitavelmente, tinha a curiosidade de vê-lo?
Caio: Estamos felizes de termos sido abordados muitas vezes com uma opinião parecida do público, seja de jornalistas, estudantes de cinema, espectadores em geral. O que podemos dizer sobre isso é que foi um trabalho meticuloso de fotografia e edição, que respeitasse o tempo atual do Kubrusly e fizesse com que o público se aproximasse dele de uma maneira delicada. É claro que há o tempo dos arquivos, mais frenético e esperto, como eram as reportagens dele na TV. O tempo de hoje é diferente, com muitos silêncios, muita música e algumas frases fortes. Não queríamos construir uma experiência em que o público atropelasse as portas daquela casa, mas, sim, que pudesse experimentar, com calma, detalhes de uma convivência tão rica em significado.
Apesar da tragédia da doença que apaga a memória de um cara tão genial como o Kubrusly, há uma leveza no filme. Onde a encontraram? Nele ou na Beatriz?
Evelyn: A leveza está em ambos, na maneira como se relacionam - entre si, como casal, e com as pessoas e com os momentos da vida. Kubrusly e Bia têm um gosto pela música e pela arte em geral. Isso é visível, quase palpável. Eles cultivam relações de amizade com pessoas que povoam o cotidiano do casal com experiências positivas. E, acima de tudo, os dois constroem uma convivência que é de adaptação às circunstâncias da vida, humor e curiosidade.
O público está bastante tocado com o filme Ainda Estou Aqui. Nele, Eunice Paiva assume um protagonismo em questões que não eram dela em um primeiro momento. Beatriz parece ter feito o mesmo. Isso transparece quando ela diz, no encontro com Gil, ‘aconteceu algo chato com a gente’, referindo-se ao fato de Kubrusly ter perdido a capacidade de ler. É isso mesmo?
Caio: Esse é um bom paralelo, que evidentemente não tínhamos como pensar no começo do projeto. Sabíamos que haveria uma participação importante da Beatriz, por ser a pessoa que mais de perto acompanha o quadro de saúde de Kubrusly. Mas há momentos como esse que somente uma observação paciente é capaz de trazer para um documentário. Um outro exemplo: há um momento no começo do filme que a Beatriz sai do quarto, onde Kubrusly quer descansar, se senta na cadeira e começa a falar sobre o nome dela ser o último que sobrou. Não era uma entrevista, não fizemos nenhuma pergunta ali. Foi um desabafo espontâneo, que surgiu naturalmente.
Beatriz declarou em uma entrevista à revista ‘Veja’, depois do documentário, que Kubrusly pensou em ‘eutanásia’ quando foi diagnosticado com demência frontotemporal. Vimos o caso do poeta Antonio Cicero recentemente, com o suicídio assistido. Acham que o documentário pode provocar também essa discussão?
Caio: Esse é um documentário que pretende falar sobre o envelhecimento, de forma mais ampla, mas não sobre essa questão especificamente. Não foi um tema que surgiu nem antes e nem durante as nossas gravações.
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Kubrusly mostra uma lição a nós jornalistas, que pode ser estendida a todos, que é se interessar e admirar o novo, como ele fez a vida toda, e agora, mesmo o novo sendo reapresentado a ele a cada instante. E vocês, o que descobriram ao fazer esse documentário?
Evelyn: Todo documentário gera ensinamentos, e mergulhar na carreira do Kubrusly - mesmo tendo trabalhado com ele - foi descobrir detalhes muito engenhosos da maneira como ele contava suas histórias. Descobrimos também aspectos de um ser humano notável, que talvez a ciência consiga explicar um dia, e a arte que ainda reverbera, apesar da perda cognitiva, as demonstrações frequentes de afeto e até as tiradas bem humoradas.
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