Ela está isolada num quarto de hotel, esperando para entrar no reality show mais famoso do país. Detestada por uns, adorada por outros, a atriz não se importa com o turbilhão político que ocupa as ruas. Pelo contrário, pensa somente na visibilidade e no cachê proporcionados pelo programa de televisão.
Esta é Ingrid Savoy, personagem principal de Foram os Sussurros que me Mataram, filme dirigido pelo cineasta, professor e crítico de cinema Arthur Tuoto. A mistura de drama, suspense e distopia terá sua primeira sessão oficial na Mostra de Cinema de Tiradentes, que começa nesta sexta-feira, 19 de janeiro (leia mais abaixo).
Mel Lisboa encarna a protagonista cínica, que se comunica com assessores através de citações extraídas de Oscar Wilde e Don DeLillo, entre outros. “Os erros ou excessos na administração do mundo das imagens produzem consequências políticas imediatas” é uma de suas falas. Outro exemplo: “Eles sabem o que significa ser a fonte de pequenas obsessões fossilizadas com o tempo?”.
Estranho, arriscado, ousado
“Eu achei interessantíssima essa estranheza. É arriscado, é ousado, mas gosto disso. Há um sarcasmo muito refinado no filme”, explica Lisboa, em entrevista exclusiva ao Estadão. “Eu nunca tinha feito isso antes. É algo muito teatral, mas ao mesmo tempo, desprovido de emoção”.
E brinca: “Para conseguir subir uma sobrancelha, com o Arthur, era uma negociação! Era tudo muito seco. A gente estudou bastante: eu assisti a 13 filmes, e cada um deles trazia uma referência específica de interpretação, de fotografia, de roteiro”.
Apesar das “bombas, suicídios, assassinatos e tiros” na trama, nas palavras da atriz, este universo não seria tão diferente da nossa realidade.
“Não é tão distópico assim. Há reality shows que vão para o extremo, uma linha tênue que beira a exposição total dos participantes. Nosso mundo naturalizou alguns comportamentos perigosos. Se a gente analisar com cuidado, já estamos na distopia”.
Mel Lisboa
Tuoto concorda: “A gente vive cada vez mais um mundo próprio, alienado nas próprias referências e conversas. Consequentemente, na própria realidade. Quis conceber personagens presos na própria loucura. Não se sabe quem fala a verdade. Quis flertar com referências do cinema de gênero, de cineastas como Hal Hartley e David Cronenberg”.
Quanto à escolha de sua atriz principal, presente na integralidade das cenas, o cineasta justifica: “Tinha que ser uma pessoa com uma beleza comercial. É algo que ela tem. A Mel traz uma linguagem teatral interessante para a personagem. Ela faz letras, vem do teatro, e vai para essa questão mais empossada, mais trabalhada”.
“Acho que a Mel ficou atraída pela possibilidade de criar algo que fugisse desse realismo que hoje em dia saturou o cinema nacional. O filme é uma reação a essa saturação”, afirma.
Carreira ‘de altos e baixos’
A atriz comemora este projeto numa época repleta de trabalhos no cinema, na televisão e no teatro. Recentemente, Lisboa atuou no solo Madame Blavatsky, além de interpretar Rita Lee nos palcos. Para ela, o teatro tem sido fundamental para se desenvolver.
“É preciso ter muita técnica para fazer teatro. Você precisa entregar um espetáculo tão bom quanto você entregou ontem, e tão bom quanto vai entregar amanhã, independentemente das condições em que se encontrar sobre o palco. Isso acaba me dando ferramentas para criar coisas diferentes. Posso fazer trabalho mais construídos agora”, diz.
Ao mesmo tempo, possui um ponto de vista pragmático em relação ao trabalho artístico. “Nem sempre a gente pode escolher os projetos; vamos com as oportunidades que surgem. É uma ilusão achar que a gente escolhe tudo. A carreira é feita de altos e baixos, de sucessos e fracassos. O ideal é ter uma média minimamente sustentável, com alguns tropeços pelo caminho”.
“Odeio fracassar, odeio quando as pessoas não gostam do meu trabalho, ou dos trabalhos onde eu escolhi estar. Mas os fracassos são importantíssimos; é onde a gente mais aprende”.
Mel Lisboa
Neste aspecto, relembra os momentos marcantes de seu percurso: “Penso em Presença de Anita, é claro, porque foi o início. Sonhos e Desejos me trouxe um prêmio bem importante no Festival de Gramado. O fato de eu ter vindo para São Paulo me trouxe duas viradas no teatro: ter feito Cine Camaleão, da Cia Pessoal do Faroeste, e a Rita Lee. Isso foi um divisor de águas”.
“No audiovisual, outra grande virada foi Coisa Mais Linda. Era o momento em que eu estava há muito tempo sem fazer uma personagem de destaque num canal grande. Quem não tem o costume de ir ao teatro, ou não tem condições, não me via há muito tempo”, sublinha.
Ótima aluna, péssima autodidata
A conexão de Lisboa com o cinema também ocorre pelas vias do teatro. Ela encarnou o papel central em Misery, espetáculo derivado do livro de Stephen King, cuja versão cinematográfica, intitulada Louca Obsessão, rendeu o Oscar de melhor atriz a Kathy Bates. A atriz também estrelou Dogville, versão brasileira do filme de Lars von Trier. “Eu fico tensa com a comparação, com medo de não gostarem”, confessa.
Ao mesmo tempo, se sente estimulada por estas propostas. “Não posso negar a referência: ela existe por si só. Mas no caso do teatro e do cinema, são linguagens diferentes. Você soma o fato de serem feitos em países diferentes, épocas diferentes, por pessoas diferentes”
“Por mais que seja o mesmo texto, vai ser algo novo. Se eu tentar copiar o trabalho da Kathy Bates, vou me lascar. Ela existe, e acho essa interpretação brilhante. Também adoro o trabalho da Nicole Kidman em Dogville. Então deixo a referência solta, e me atenho ao trabalho em si”, completa.
Ela admite que raramente assiste aos seus filmes ou séries do passado. “Sou muito crítica. Isso às vezes me atrapalha. No teatro, você não pode se assistir — o seu espelho é o outro. É possível gravar a peça, mas não é a mesma coisa. No audiovisual, gosto de assistir ao trabalho na hora, porque quero ver o resultado, mas depois paro e não vejo nunca mais. Senão fico me sentindo a Norma Desmond, maluca, só me assistindo!”, brinca, citando a diva narcisista de Crepúsculo dos Deuses.
Em relação ao trabalho com diretores, prefere aqueles que ofereçam caminhos precisos para a construção da personagem. “Eu sou uma ótima aluna e péssima autodidata. Gosto quando dizem: ‘Toma essa referência. Assiste a isso. Lê aquilo’. Aí vou entendendo o que está na cabeça daquele diretor”. No entanto, frisa:
“A gente pode, durante o processo, conversar e divergir. Não é porque sou boa aluna que vou obedecer a tudo o que me pedem”.
Mel Lisboa
Entre seus objetivos, Lisboa busca adquirir mais autonomia na carreira. Deseja produzir novos espetáculos próprios, e também “produzir audiovisual, porque ainda não fiz isso. Gosto bastante do formato da minissérie, com poucos episódios e uma temporada só. Penso em Cenas de um Casamento, por exemplo, que é excelente. Ainda tenho desejo de fazer os clássicos do teatro, os grandes clássicos. Isso ainda vai acontecer”, aposta.
27ª Mostra de Cinema de Tiradentes
A 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes ocorre entre os dias 19 de 27 de janeiro de 2024. O evento mineiro é inteiramente dedicado ao cinema brasileiro, com foco em produções autorais, radicais e experimentais. Serão exibidas sessões gratuitas de 145 filmes (entre longas-metragens e curtas-metragens), provenientes de 20 estados brasileiros. “As Formas do Tempo” foi o tema escolhido para esta edição. Saiba mais.
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