Há uma cena na nova comédia dramática indie Goodrich, com lançamento previsto para outubro, em que o personagem de Michael Keaton, um negociante de arte de Los Angeles perdido na selva de uma crise de meia-idade tardia, concorda em participar de um workshop de respiração, só para conquistar um cliente meio New Age. Trata-se de um alvo fácil: um boomer, verdadeiro peixe fora d’água se debatendo nas modinhas da Califórnia.
Mas o ator, com um furacão de esperança e ansiedade no rosto, faz mais do que encontrar sua “vibração mais elevada”. Ele se solta, viaja e tenta um tipo de tai chi freestyle: bate num enxame de abelhas invisíveis e solta um grito primal (mais parecido com um ganido estrangulado, na verdade). Este é o Keaton que Hallie Meyers-Shyer, roteirista e diretora de Goodrich, imaginou quando concebeu o roteiro.
“Escrevi o filme 100% pensando nele”, disse ela. “Se ele tivesse dito não, eu teria enterrado o roteiro e a mim mesma no quintal”.
E foi o mesmo senso de imprevisibilidade, um certo brilho de curinga, que levou o cineasta Tim Burton a escalar Keaton para cinco filmes ao longo de quase quatro décadas, entre eles, mais recentemente, Os Fantasmas Ainda se Divertem: Beetlejuice Beetlejuice. “Quando você vê o Michael em Beetlejuice ou mesmo em Batman, ele tem esse tipo de olhar”, disse Burton. “É por isso que eu queria que ele fosse o Batman, porque você olha para ele e pensa: ‘Esse é um cara que se vestiria de morcego’. Entende o que quero dizer? Tem algo por trás dos olhos dele que é muito inteligente, engraçado, perigoso e meio maluco”.
O Keaton que se acomodou no canto do salão silencioso de um hotel no centro de Manhattan numa manhã do final de agosto não parecia muito maníaco. Vestido com o elegante uniforme de pai descolado, com malhas finas e calças bem cortadas, ele ainda estava em forma aos 72 anos (completou 73 na quinta-feira) e falava tão suavemente que às vezes era difícil ouvi-lo por causa da máquina de cappuccino.
Mas aquelas sobrancelhas arqueadas e o sorriso de gato de Alice estavam intactos, assim como a energia free-jazz de seu papel de destaque na comédia Corretores do Amor, de Ron Howard, em 1982. Até mesmo a chegada do café coado provocou uma espécie de monólogo de bebop: “Muito bem, cara! Perfeição! Perfeito, perfeito, perfeito”.
Esse nível de entusiasmo pode parecer estranho para os espectadores que viram Keaton recentemente como um médico de bom coração que fica viciado em OxyContin na série Dopesick, de 2021, pela qual ele ganhou um Emmy e um Globo de Ouro, ou que viram suas atuações mais moderadas e sérias em dramas que falam a verdade ao poder, como Spotlight e Os 7 de Chicago. Poucos papéis, no entanto, sintetizaram seus dons de unir comédia e drama com tanta destreza quanto Birdman (2014), a extraordinária fantasia de Alejandro Iñárritu que rendeu a Keaton sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator e levou para casa quatro Oscars, entre eles o de melhor filme.
Essa atuação, que exigiu que o astro de dois filmes do Batman interpretasse um ator decadente que já tinha interpretado um super-herói, foi anunciado como um retorno após vários anos de inatividade em Hollywood. Keaton entende a narrativa, mesmo que não concorde totalmente com ela. “Teve um período em que eu não tinha nenhum interesse, não fazia nada de bom, não estava bem”, disse ele. “Não tinha ninguém batendo à minha porta. O único mérito que tenho é o de nunca ter me desesperado. Nunca me desesperei. Sabe aquela bruma que paira sobre a bacia de Los Angeles quando você chega de avião? Aquilo na verdade é desespero”.
Pode-se dizer que ele passou tranquilamente por essa bruma. Sua agenda de lançamentos para 2024 inclui o drama Pacto de Redenção, agora em streaming no Max, no qual ele dirige e estrela como um assassino de aluguel com uma forma de demência; Goodrich, nos cinemas em 18 de outubro; e, como você talvez já tenha visto em inúmeros outdoors e letreiros de multiplex, Beetlejuice Beetlejuice, em 18 de outubro – a continuação, 35 anos depois, de Os Fantasmas se Divertem, que reúne ele e Burton, além de várias estrelas do filme original, como Winona Ryder e Catherine O’Hara.
Por muito tempo, tanto Keaton quanto Burton hesitaram sobre a possibilidade de uma continuação, mesmo seguindo em colaboração (como no ambicioso live-action Dumbo, lançado em 2019). Quando os dois se conheceram no final da década de 1980 e começaram a trabalhar no visual do Beetlejuice de Keaton – um morto-vivo malandro que adora baratas e ternos com listras – eles ficaram basicamente improvisando. “Foi o primeiro grande filme do Tim”, lembrou Keaton. “Quer dizer, ele já tinha feito A Grande Aventura de Pee-wee. Mas éramos nós dois, quase sem ninguém olhando por cima dos nossos ombros, dizendo: ‘Não sei – o que você acha disso?’ ‘Muito bom, adorei! Sabe o que seria divertido? Se a gente fizesse X, Y e Z’. Foi simplesmente glorioso. Então, fazer tudo de novo, recriar tudo isso, é pedir muito dos roteiristas”.
Ao longo de várias décadas, os esboços de roteiro apareceram e desapareceram. Nenhum deles conseguiu acertar o alvo. “Fiz reboots, rehabs, re-tudo”, disse Burton. “Não me importo com nada disso. Eu queria fazer por causa do Michael, da Catherine e da Winona”. O novo enredo que eles finalmente escolheram – uma história meio gótica que mostra a família das personagens de O’Hara e Ryder mais uma vez aterrorizada por visitantes indesejados da vida após a morte – foi expandido para incluir Jenna Ortega, a jovem estrela da série de sucesso de Burton na Netflix, Wandinha, e a sensual atriz italiana Monica Bellucci como a esposa vingativa de Beetlejuice.
Isso deixou um tempo de tela um tanto limitado para o homem que interpreta o Beetlejuice – de propósito, segundo Keaton. “Eu falei: ‘Tim, se for para fazer tudo de novo, não posso participar mais do que participei no primeiro. Seria um grande erro’. Ele respondeu: ‘Eu sei’. E eu disse: ‘E o segundo tem que ser feito à mão, assim como o primeiro. Menos, menos, menos, menos tecnologia’. Ele estava muito à frente de mim nesse ponto. Quase dá vontade de ver um pouco de madeira compensada, entende o que quero dizer?” De fato, o resultado final tem um certo ar de prego, martelo e massa de modelar, aquele eco consciente de escola de arte bagunçada do filme original.
É claro que há uma diferença entre as restrições de um grande filme de estúdio tão arraigado no imaginário popular que acabou virando uma atração na Universal Studios e um espetáculo de longa duração na Broadway, e as restrições concretas da produção de filmes independentes.
Projetos mais pessoais
Entre trabalhos que talvez sejam mais notáveis pelo valor do salário, como o recentemente engavetado Batgirl e vários papéis de voz em animações (Carros, Toy Story 3, Minions), Keaton tem se concentrado cada vez mais em projetos menores e mais pessoais.
Pacto de Redenção é um deles, uma história que exigiu que o ator interpretasse um assassino profissional e homem de família fracassado – ele é divorciado e há décadas não fala com o filho adulto, interpretado por James Marsden – que descobre que tem uma doença cerebral agressiva. A atriz polonesa Joanna Kulig (Guerra Fria) é outro destaque, assim como Marcia Gay Harden e Al Pacino.
É um filme melancólico e inconstante, ao mesmo tempo triste e sangrento, com uma intrincada trama criminal embutida no roteiro. É também a segunda vez, estranhamente, que Keaton dirige e estrela um filme sobre assassino, depois de Má Companhia, em 2008. (“Eu gostaria de participar de qualquer filme de Michael Keaton”, disse Pacino. “Seja atuando com ele ou sendo dirigido por ele”).
A princípio, as semelhanças fizeram Keaton hesitar, assim como a violência inerente ao tema. “Isto é o mais estranho”, disse ele. “Eu particularmente nem gosto desse tipo de filme. Para começo de conversa, tem gente que os faz um zilhão de vezes melhor do que eu. Também acho que estamos sendo muito superficiais com relação às armas, cara. Ainda é uma questão de vida e morte”.
Mas ele gostou da forma como forçou seu personagem a enfrentar a perda de controle. “Eu queria ver se conseguiria fazer a morte desse cara, a perda de suas capacidades, sua deterioração – e filmar tudo em, tipo, 25 dias”, disse ele. “Será que eu conseguiria deixar tudo isso crível?”
Os riscos de vida ou morte com certeza são menos literais no alegre e agridoce Goodrich, embora o filme ainda traga questões complicadas de família e mortalidade. Keaton interpreta Andy Goodrich, um carreirista ambicioso cujo negócio de arte começa a fracassar na mesma época em que sua segunda esposa o deixa com seus gêmeos de 9 anos e que sua filha adulta (Mila Kunis) está se preparando para dar à luz o primeiro filho.
Apesar do relacionamento tenso na tela, Kunis achou fácil se conectar com Keaton quando eles se encontraram pela primeira vez para jantar, semanas antes das filmagens. “Ele tem uma vida bem equilibrada ao seu redor”, disse ela. “Seu trabalho não deve definir quem você é, e acho que é por isso que as pessoas às vezes se perdem nessa indústria. Elas viram o trabalho delas. E, para Michael, quem ele é e o que ele faz são duas coisas diferentes”. Além disso, ela acrescentou com uma risada, “Ele curte muito a palavra ‘garota’. No set, fora do set, era sempre ‘garota, garota’”.
Até certo ponto, tanto Pacto de Redenção quanto Goodrich tratam dos fracassos e arrependimentos da paternidade: dois retratos muito diferentes de pais ausentes que esperam se redimir antes que seja tarde demais. Na sua vida pessoal, porém, as histórias de disfunção familiar não parecem ter muito a ver com Keaton. O mais novo de sete filhos nascidos e criados numa família católica de classe operária nos arredores de Pittsburgh, ele se lembra de ter crescido com “três das melhores irmãs e a melhor mãe”, além de três irmãos mais velhos e “um monte de amigos malucos”. A imagem que ele pintou foi a de uma infância ao ar livre, alegremente analógica, com muita ousadia e travessuras.
Assim, quando o sucesso chegou no início dos anos 1980, depois de dois anos de estudos na Kent State e de uma passagem vacilante pelo stand-up – certa vez, ele abriu para Cher e foi um fracasso – Keaton logo comprou um rancho perto de Big Timber, Montana, onde ainda vive a maior parte do ano. E embora seu casamento com a atriz Caroline McWilliams tenha terminado em 1990 (ela morreu em 2010), a presença como pai teve precedência sobre certas considerações profissionais. “Eu poderia ter feito muito mais filmes, ganhado muito mais dinheiro”, disse ele. “Mas tive um filho porque queria ser pai. Eu simplesmente gostava”.
O evidente orgulho de Keaton por seu único filho, Sean Douglas, compositor e produtor musical que tem dois filhos, muitas vezes aparece no Instagram do ator, onde ele tem cerca de 1 milhão de seguidores. É um meio de comunicação que fica ainda mais cativante devido à natureza espontânea das postagens de Keaton, que muitas vezes dão uma sensação de Tim Walz, com seu liberalismo popular e entusiasmo incontrolável. (Os assuntos mais populares são pesca, beisebol, política, netos e capturas de tela aleatórias de sua televisão).
Agora sua reputação de Homem de Montana tende a precedê-lo em todos os perfis de celebridades, embora Keaton tenha dissipado a percepção de que ele é uma espécie de lobo solitário que vive na fazenda. “Tenho quase tantos amigos lá quanto tenho em Nova York, Los Angeles e no mundo todo”, disse ele. “E a região sempre atraiu escritores, artistas e excêntricos. Não é Hicksville, digamos assim”. Ele parece ter uma vida social ativa; sua conversa foi apimentada com referências casuais a seus bons amigos “Carville” (que seria o consultor político James Carville) e ao ator Griffin Dunne, mas também a muitos conhecidos sem página no IMDb.
“Adoro pessoas que ainda dão aquela sensação de ‘você não sabe tudo sobre elas’, sabe? Estamos num mundo em que todo mundo sabe tudo sobre todo mundo, e isso acaba um pouco com a mística”, disse Burton, com quem Keaton manteve um vínculo duradouro, embora improvável, ao longo dos anos: o príncipe gótico do cinema e o paizão pescador dos Estados Unidos. “Michael entra na sala feito um pugilista. Ele dança um pouquinho no ringue e já vai embora”.
Keaton vê a coisa de um jeito diferente. “Sou o cara que gosta de se dar bem em tudo. Admito que sou”, disse ele, com os olhos ainda brilhantes sobre a xícara de café que esfriava. “As pessoas dizem: ‘Bem, não é assim que funciona’. E eu digo: ‘Funcionou muito bem para mim’”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Leia também
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.