Faz um ano que Claude Lanzmann morreu – em 5 de julho de 2018 – em Paris, aos 92 anos. Aqui mesmo, no Estado, Gilles Lapouge lembrou o titã que criou Shoah. Em seu texto, citou um amigo escritor que dizia – “Para virar antissemita, basta conversar meia hora com Lanzmann. Você será antissemita por toda a eternidade.” Amigo de Jean-Paul Sartre, redator de Les Temps Modernes – a revista sartriana –, amante de Simone de Beauvoir, pensador, escritor, cineasta, Lanzmann foi um personagem extraordinário, mas também controverso. Provocou polêmica num debate na Flip, em 2011, com direito a réplica e tréplica.
Se o homem podia ser exasperante, nunca houve dúvida de que, com Shoah, ele criou um documento excepcional. Simone de Beauvoir disse que o filme tinha magia, e magia não se explica. “Lemos, após a guerra, uma avalanche de testemunhos sobre os guetos e campos de extermínio, mas, ao ver esse filme, nos damos conta de que não sabíamos nada.”
A partir desta quarta, 17, e por vários dias – quinta, 18, e quarta e quinta, 24 e 25 –, dividido em quatro partes, Shoah estará de volta no MIS, para que uma nova geração – a produção é de 1985 – enfrente o desafio das suas 9 horas e meia de duração e descubra uma obra visceral. Não apenas novos espectadores. Depois do É Tudo Verdade, que apresentou em abril Ziva Postec – A Montadora por Trás do Filme ‘Shoah’, uma outra história tem de ser contada. Interessa até a quem já conhece o filme e sua mitologia.
Na estreia de Shoah, lembra a diretora Catherine Hébert, de Ziva Postec, Lanzmann manteve sua montadora longe dos holofotes – para colher sozinho os louro? Embora sentida, Ziva não criou caso. “Sei o que fiz, sei o trabalho que tive.”
Documentários de fundo histórico muitas vezes, senão sempre, valem-se de material de arquivo, mas Shoah prescinde dessas imagens. Utiliza somente os depoimentos dos sobreviventes dos campos de extermínio, os carrascos e as vítimas, mas também pessoas que pareciam não ter envolvimento direto, na Alemanha, Polônia. E o filme revela as paisagens nas quais os nazistas perpetraram seu crime indizível – Auschwitz, Treblinka. Em Chelmno, sob toda aquela relva pacífica, é difícil acreditar que houve tanto horror.
Lanzmann era um entrevistador implacável. Fazia perguntas que até parecem triviais, mas pressiona um judeu, um barbeiro em Tel-Aviv, para que conte como sobreviveu – cortando os cabelos das mulheres que iam para a câmara de gás. O homem fraqueja, pede para parar, mas Lanzmann não cede. Continua, a câmera ligada. O testemunho é necessário. E, assim, ele restitui uma oralidade que poderia ter-se perdido.
O valor é inestimável, mas o documentário sobre Ziva, também. Ela conta como recebeu do cineasta 350 horas de material que ele colheu e nenhuma orientação precisa sobre o que fazer com a torrente de imagens e depoimentos. Em trabalho de anos, Ziva encontrou o ritmo, criou as conexões e os silêncios.
Nessa época de empoderamento, é fácil dizer que Hébert talvez esteja reivindicando a coautoria de Shoah para Ziva. É possível, mas resgatando a figura da montadora, o que ela debate é a necessidade da montagem como instrumento de linguagem, e política. Do russo Serguei M. Eisenstein até o norte-americano Stanley Kubrick, grandes diretores destacaram a primazia da montagem na organização das imagens no inconsciente do público. Shoah era, e continua sendo, excepcional, mas talvez o que mude agora seja nosso olhar sobre a obra.
O gênio de Lanzmann persiste na ideia de documentar o Holocausto com base na palavra que, no judaísmo tradicional, designa catástrofe, ou aniquilação. Foram 6 milhões de vítimas da barbárie da solução final nazista, mas o filme, falando de destruição e morte, é uma afirmação de vida. Nesse momento em que um pensamento de direita ergue-se, a memória segue viva, como um alerta. Lanzmann, sim. O que não dá mais para omitir é a contribuição de Ziva ao clássico
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