Quem (re)viu Bang Bang na recente programação de clássicos e obras cults da Cinemateca Brasileira deve ter se surpreendido, em primeiro lugar, com a ousadia do filme de Andrea Tonacci, mas principalmente com sua vitalidade. Embora realizado em 1971, no auge do movimento chamado de ‘marginal’, o filme, passados 45 anos, não perdeu nada de sua capacidade de provocar, surpreender. E o ator Paulo César Pereio criou uma persona única no cinema brasileiro. Como Tonacci, de resto.
O frescor do filme, e da experiência, sensibiliza o cinéfilo, ainda mais que Tonacci vinha lutando contra um câncer no pâncreas. Nesta sexta, 16, ele não resistiu mais. Morreu, aos 72 anos. O anúncio foi feito no site da Cinemateca. Nascido em Roma, em 1944, o garoto Andrea mudou-se para o Brasil com a família. Veio aos 11 anos. Chegou a cursar arquitetura e engenharia, mas abandonou os dois cursos para se dedicar ao cinema. Fez um curta em 1966, Olho por Olho; um média em 1968, Blábláblá. Em 1971, estreou no longa, e foi com Bang Bang.
Pelos anos e décadas seguintes, Tonacci seguiu filmando, mas, para o espectador, os filmes chegavam como experiências descontínuas. Até que, em 2006, ele fez Serras da Desordem. O filme ganhou instantânea consagração em festivais – venceu o Kikito em Gramado –, mas o mais importante é que Tonacci virou uma espécie de favorito da crítica jovem. Passou a ser reverenciado em eventos como a Mostra de Tiradentes – grande vitrine do cinema de invenção no País. Em 2010, foi agraciado com a Ordem do Mérito Cultural, maior reconhecimento do governo brasileiro a personalidades que contribuem para o desenvolvimento da identidade cultural nacional.
Para seu talento e importância, Tonacci não filmou muito. Depois de Serras da Desordem, estreou somente Já Visto Jamais Visto em 2014. O pouco não tem a ver com inatividade, muito menos com qualidade. Como autor ‘marginal’, ele desenvolveu sua carreira à margem – do mercado. Bang Bang sequer teve lançamento comercial. Isso não impediu o filme de seguir sua carreira no Brasil (em cineclubes) e no exterior (foi selecionado para a Quinzena dos Realizadores em Cannes). É uma obra-prima de transgressão, sobre um homem (neurastênico) que se envolve em várias situações radicais durante a realização de um filme.
Tiroteios, perseguições, o confronto com um trio de bandidos, uma discussão num táxi, um romance (com uma bailarina espanhola). Muito mais tarde, falando sobre os filmes do começo de sua carreira, Tonacci disse que expressavam sua revolta – com a arte e o mundo. A revolta prossegue com o Carapiru, de Serras da Desordem, em quem Tonacci identifica uma dupla tragédia – a do índio massacrado, espoliado, marginalizado, e a dele próprio, como autor, tentando denunciar essa realidade.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.