Em 2008, num de seus últimos papéis, Jean-Paul Belmondo ousou refazer o clássico Umberto D, de Vittorio De Sica. Um Homem e Seu Cachorro, Um Homme et Son Chien, no título original. Era preciso muita coragem para fazer o remake do clássico neorrealista, interpretando - ele, que foi um astro - o papel tornado inesquecível por um não profissional, Carlo Battisti. O filme não repercutiu, diferentemente dos anos 1960 e 70, quando Bebel, como era conhecido, disputava com Alain Delon o topo das preferências do público na França.
Delon, o belo, Bebel, o feio charmoso. Delon segue como impávido colosso, mas Belmondo saiu de cena nesta segunda, 6. Morreu em Paris, aos 88 anos. “Estava muito cansado há bastante tempo”, disse seu advogado, Michel Godest. “Morreu tranquilamente.” A causa não foi divulgada.
Os rumores sobre um alegado agravamento do estado de saúde de Belmondo até tinham sido desmentidos pelo amigo e também ator Antoine Duléry, numa entrevista à emissora de TV francesa Telestar, no sábado, 4. Duléry contou ter almoçado com Belmondo na segunda-feira anterior. “Um excelente momento”, disse, acrescentando, sobre o amigo, tratar-se de “um homem de 88 anos: já não era um jovem, mas estava bem”.
Filho de artista - o escultor Paul Belmondo -, Jean-Paul deu cara à nouvelle vague ao estourar como o Michel Poiccard de Acossado, de Jean-Luc Godard. O ano, 1959. A nova onda, movimento de renovação do cinema francês na segunda metade dos anos 1950, já tivera seu batismo de fogo em Cannes, com a premiação de Os Incompreendidos, de François Truffaut, naquele ano. Michel nos Champs-Elysées, atrás de Patriciá/Jean Seberg, a garota norte-americana que vende os exemplares do The New York Herald Tribune. Nascia um dos casais emblemáticos do cinema moderno.
Embora ele ali tenha estourado, Bebel já tinha uma carreira no teatro e no próprio cinema, onde aparecera em nove filmes - Acossado foi o décimo. Dois merecem atenção, dois policiais - Quem Matou Leda?, de Claude Chabrol, e Encurralado, de Claude Sautet -, o segundo lançado somente depois.
Instantaneamente, Belmondo lançou um novo tipo de astro. O antigalã, com seu nariz amassado de boxeador. O jovem - nascido em Neuilly, em 1933 - era um imitador nato. Incorporava tiques de célebres durões de Hollywood. Humphrey Bogart, James Cagney, Henry Fonda. Perfeito para um filme dedicado a um estúdio B de Hollywood, o Monogram. Mas o modelo, nada secreto, do filme e do ator foram Cais das Sombras, da dupla Marcel Carné e Jacques Prévert, e Jean Gabin.
Da noite para o dia, Belmondo virou o jeune premier mais requisitado do cinema francês - Delon estava construindo sua carreira na Itália, com Luchino Visconti. Belmondo, por sinal, também foi filmar em Roma - com Alberto Lattuada (A Noviça Proibida), Vittorio De Sica (Duas Mulheres), Mauro Bolognini (Caminho Amargo). Na França, continuou ligado a Godard (Uma Mulher É Uma Mulher), mas abriu o leque, filmando com Peter Brook (Moderato Cantabile/O Suplício de Duas Almas) e Jean-Pierre Melville (Léon Mourin, Prête). Não se furtou a iniciar longas parcerias com diretores comerciais como Henri Verneuil, mas a associação mais duradoura, e feliz, talvez tenha sido com um pequeno gênio da comédia, Phillipe De Broca.
Nas pegadas de Cartouche, de 1962, fizeram no Brasil O Homem do Rio, uma jóia da comédia de aventuras, e prosseguiram com As Fabulosas Aventuras de Um Playboy e O Magnífico. De volta a Godard, fizeram Pierrot le Fou, lançado no Brasil como O Demônio das Onze Horas. Bebel e Anna Karina, uma imagem do filme - o beijo dos dois, cada um na direção de um carro, em sentidos contrários - virou o pôster do Festival de Cannes de 2018. Nova parceria com Melville produziu Técnica de Um Delator, mas a par de Godard os maiores filmes de Belmondo com autores ligados à nouvelle vague foram O Ladrão Aventureiro, talvez a obra-prima de Louis Malle, e mais para um velho e cansado Arsène Lupin do que para nova onda, e Stavisky, um suntuoso Alain Resnais. Seu François Truffaut não foi dos melhores - A Sereia do Mississippi -, desconstrução dolorida de uma ligação amorosa.
Por volta de 1970, Jacques Déray juntou-o a Delon em Borsalino, homenagem aos filmes de gângsteres de Hollywood (e aos famosos chapéus que portavam). O filme fez história nas bilheterias. Durante pelo menos quatro décadas - cinco -, Jean-Paul Belmondo deu uma cara ao cinema francês autoral, filmando com grandes diretores, e também ao de qualidade, feito por grandes profissionais. Nesses últimos, ele não apenas atuava, produzia. São filmes escritos para ele, baseados em histórias - e até piadas - que ele propunha. Com Belmondo, vai-se toda uma era do cinema francês.
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