‘Motel Destino’, de Karim Aïnouz, estreia em Cannes: ‘Quero que o Brasil também veja meu trabalho’

Equipe do longa brasileiro fez festa no tapete vermelho de Cannes e filme foi aplaudido após a exibição no festival

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CANNES - Karim Aïnouz é o único diretor brasileiro cuja obra tem sido inteiramente referendada pelos grandes festivais internacionais. Cannes, Berlim, Veneza.

Estreou em Cannes, na mostra Un Certain Regard, com Madame Satã, em 2002. Voltou na mesma seção em 2006 com O Céu de Suely. Venceu-a com A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão), em 2019. Mostrou ainda Abismo Prateado na Quinzena, em 2011. No ano passado participou pela primeira vez da competição com seu longa em língua inglesa, Firebrand.

Karim Aïnouz e parte do elenco de 'Motel Destino', Fabio Assunção e Nataly Rocha posam no tapete vermelho da estreia do filme no Festival de Cannes. Foto: Yara Nardi/Reuters

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Karim pisou nesta quarta-feira, 22, no tapete vermelho do 77º Festival Internacional do Filme competindo pela primeira vez com um longa em língua portuguesa. Brasil! Motel Destino nasceu do seu desejo de fazer um filme popular. Um policial de recorte noir. Claro que se passando no Ceará, Motel Destino é, pelo menos parcialmente, um filme solar. Talvez, melhor dizendo, um filme fraturado como seus personagens. Tem o fundo da praia, do sol, do mar, mas o trio de personagens principais vive encerrado numa prisão, o motel do título.

Fábio Assunção é o nome mais conhecido do elenco. Em oposição a ele, está o estreante Iago Xavier. E entre os dois coloca-se Nataly Rocha, que fez a preparação do elenco de Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, e já participou de montagens de Felipe Hirsch. Um trio incandescente. Sexo, desejo e morte. Como o jovem cinéfilo que Karim foi um dia, sonhando virar diretor, veria hoje o autor estabelecido em que se converteu?

Quem conhece Karim sabe que ele é capaz de desarmar o interlocutor com sua risada contagiante. É o que faz. “Em primeiro lugar, não sou estabelecido. Ao iniciar esse aqui, eu estava com a mesma incerteza de todos os meus filmes anteriores. Será que vai certo? Domino mais minhas ferramentas, conheço mais meu ofício, mas o frio na barriga é essencial no processo criativo. É o que move a gente no processo. Quando não houver mais tesão será melhor parar.”

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Triângulo amoroso explosivo

Tesão é a palavra certa, ao se falar em motel. “Só um país que ainda reprime o desejo ainda precisa um lugar desses”, ele avalia. O filme começa com dois irmãos, um deles Iago, metidos com uma trambiqueira que os destaca para cobrar a dívida de um tal Francês. Mas Iago vai para a balada e termina no motel com uma mulher que o chama de ‘Amor!’ na hora do gozo, mas logo em seguida lhe aplica um golpe. Quando ele consegue sair, é para descobrir que o irmão, que foi para a ação sozinho, morreu. Caçado por seu bando, Iago refugia-se no motel. Envolve-se com Nataly, que é mulher de Assunção. O triângulo está formado, e é explosivo.

O filme é uma coprodução brasileiro-franco-alemã-britânica-australiana. Foi alavancado por políticas públicas do Governo do Ceará, que está investindo no audiovisual. Entre os projetos em desenvolvimento por Karim está a adaptação do livro Favela High Tech, de Marco Lacerda, o submundo do sexo no Japão. Karim desistiu do projeto? Pois Motel Destino, com suas TVs que mostram a toda hora gente fazendo sexo, e os brinquedinhos, e o barulho nos quartos, bem pode ser uma compensação, ou uma preparação para o outro filme.

“Vou fazer, sim, mas demorei para encontrar o recorte. O livro é sobre uma nipo-brasileira, não me encaixava nesse universo, mas aí surgiu o namorado, um argelino-brasileiro, como eu.” Motel Destino nasceu com a vontade de ser um filme popular. “Gosto que os meus filmes interessem a plateias internacionais, senão não estaria em todos esses festivais, mas quero que o público do Brasil, após esses cinco terríveis anos, também tenha um olhar para o meu trabalho.”

Cena do filme Motel Destino, de Karim Ainouz. Foto: Foto Jarbas Oliveira/Divulgação

Juventude asfixiada

O sexo é o motor da narrativa. O garoto chega a exclamar. “Eu gosto de transar!”, usando uma expressão mais forte. Motor ou ferramenta, o sexo impulsiona o desejo, mas isso é história, é trama. Os temas são outros. “Preocupa-me muito ver esse avanço dos evangélicos, com sua pauta conservadora. Sexo é prazer, é necessidade vital. A juventude está sendo asfixiada no seu desejo. Queria mostrar o jovem prisioneiro no motel, com seu tesão estourando. Mas isso é só meio filme. Por meio do Fábio (Assunção), queria fazer a autópsia do macho brasileiro. Quem são essas pessoas? O que pensam, por que agem assim? Como o sexo vira instrumento de poder e dominação.”

Entre os dois está a mulher. “Todos os personagens são instáveis nesse filme, e ela mais ainda. Creio que os três têm raízes profundas nos filmes que fiz antes. O garoto, em Praia do Futuro. O Fábio tem muito a ver com o rei de Firebrand, meu filme invernal, em língua inglesa. E a Nataly é a mulher de todos os meus filmes, tentando afirmar seu espaço no mundo dos homens.” Um filme rigorosamente autoral, portanto. É o que ressalta todo o elenco. “Essa coisa do estabelecido que você falou com ele me serve”, diz Fábio Assunção. “Terminei no ano passado uma relação de 33 anos com a Globo. Estou me sentindo num recomeço. Precisava de um personagem assim, com essa instabilidade, essa fragilidade na força, para me motivar. Espero que o Elias [nome do personagem] me traga novas oportunidades. E é sempre bom estar em Cannes, com os holofotes do mundo do cinema todos ligados no que se passa aqui.”

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Iago Xavier, Karim Ainouz, Nataly Rocha e Fabio Assuncao no tapete vermelho de Cannes.  Foto: Sameer Al-Doumy/AFP

Menos estrelados

Iago e Nataly. Ela tem mais experiência, é só o primeiro filme dele. “Tivemos uma preparadora incrível – a atriz Sílvia Lourenço -, mas no limite é o Karim que orienta a gente, que coloca a câmera, que sabe o que quer. E ele, embora controlando o set, fazendo todo mundo ficar focado, ouve a gente, aceita sugestões. É muito aberto”, diz Nataly. Iago – “A gente viveu praticamente naquele motel, fazendo a preparação. Karim botava para rodar uma gravação dos sons nos quartos enquanto a gente se aquecia para as cenas. Dizia – “Para o som, ação!” E a gente embarcava, numa entrega muito intensa. Era tudo ensaiado, coreografado. Não tínhamos medo nenhum. E havia uma preparadora de intimidade para evitar qualquer sugestão de malícia ou abuso, para evitar até mesmo que a gente se machucasse. Isso nos dava segurança. Foi tudo muito intenso.”

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Iago tem 24 anos, Nataly, 28. O filme pode marcar o momento da explosão para eles. Iago tem uma frase linda, quase no final. Não é bem o tema da segunda chance, mas seu personagem atravessa o filme lutando contra tudo e todos, inclusive ele mesmo, para se manter à tona num mundo que o puxa para baixo. “Teve gente que me disse que essa fala era desnecessária, mas eu acho que ela meio que define o filme, e o personagem. Quis muito fazer Motel Destino por causa dela.” Uma fábrica de gelo entra na história. “Não tinha no roteiro, mas quando vi aquilo me deu uma vontade imensa de filmar. É o oposto do calor, do sol do Ceará.” E é ali que o menos bressoniano dos grandes diretores brasileiros – mais improvável – faz com que Iago faça uma declaração de amor que remete ao final de Pickpocket, de Robert Bresson. “Não sei se é tão improvável assim. Por mais sociais que possam ser meus filmes, eu também filmo atrás da vida invisível, para chegar ao interior de meus personagens.”

Um filme sobre personagens fraturados internamente também aposta nas próprias fraturais, digamos, visuais. Existe a praia onde Iago nada com o irmão, rasgos de céu, de sol, mas o filme se passa predominantemente dentro da prisão – o motel -, que ressalta a solidão desses homens, e mulher. O interior é intencionalmente feio, vulgar. As cores violentas ressaltam uma espécie de mau-gosto. Mau gosto que, aliás, parece em alta aqui em Cannes, com a acolhida da crítica a The Substance, de Coralie Fargeat, o mais estrelado dos filmes nos quadros de cotações das revistas especializadas que circulam diariamente no festival. Só um diretor/autor seguro de suas intenções arrisca-se assim. “A gente tenta”, e Karim solta seu sorriso. Despede-se.

Exibição em Cannes tem aplausos e dança

O clima no tapete vermelho de Cannes era festivo. E com razão: Motel Destino estreava na principal disputa do festival francês e chamava a atenção para o cinema brasileiro como há tempos isso não acontecia.

A equipe passou pelo tapete dançando. Na sala de cinema, a cada nome que surgia na tela, mais aplausos e festa. Depois da exibição do longa, o mesmo: aplausos e celebração.

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Ao microfone, em inglês e português, Karim celebrou: “Depois de quatro anos de terror, foi muito bom voltar ao Brasil para fazer um filme sobre a vida, a alegria e a paz.” / COLABOROU MARIANE MORISAWA

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