Para os jovens, parecerá um relato de ficção científica, mas os mais velhos vão se lembrar. Há 50/60 anos, o tempo de duas gerações, o Brasil podia ser um país laico, mas a religião católica tinha muito mais influência na vida cotidiana das pessoas. A Sexta-Feira Santa não era, como hoje, um dia feriado, em que alguns escolhem ir à praia e outros vão ao cinema, optando entre quantos tons de cinza, ou de vermelho sangue (de violência), quiserem. Antigamente, as rádios só tocavam música clássica e os cinemas suspendiam a programação normal para exibir a velhíssima Paixão de Cristo do pioneiro Ferdinand Zecca.
Nesta Sexta-Feira Santa, 3, não há nenhum filme bíblico ou religioso em cartaz, mas à tarde a TV paga exibe Rei dos Reis, a versão de Nicholas Ray, de 1961. Cultuado por Jean-Luc Godard e François Truffaut, chamado de poeta maldito, o Rimbaud de Hollywood, Ray atravessou os anos 1950 filmando a doença da sociedade norte-americana. Seus heróis – pistoleiros, drogados, jovens carentes e violentos – eram todos atormentados. E aí, em 1961, logo após uma série de grandes filmes – Jornada Tétrica, A Bela do Bas-Fond e Sangue sobre a Neve –, Ray aceitou o convite do produtor Samuel Bronston e fez seu épico sobre Cristo. E encontrou a paz interior na figura do pescador de homens interpretado por Jeffrey Hunter.
Ray sempre disse que o cinema é a melodia do olhar. Ator de filmes míticos de John Ford (Rastros de Ódio e Audazes e Malditos) e do próprio Ray (Quem Foi Jesse James?), Hunter vestiu o manto do Cristo, mas o que ressalta no filme é a profundidade de seus olhos azuis. Em mais de um momento eles ocupam toda a tela, para representar a paz. Há 50 e tantos anos, em plena erupção da nouvelle vague, nem mesmo tietes como Godard e Truffaut reconheceram em O Rei dos Reis o grande filme que é. É um superespetáculo – um épico – inteligente, lindamente realizado. E a cena do Sermão da Montanha é uma obra-prima. O Cristo que se movimenta entre a multidão, a câmera que o acompanha criam um balé imortal, como você poderá confirmar nesta tarde de sexta, às 14h30, no TCM.
Mais de meio século mais tarde, um astro brasileiro, Rodrigo Santoro, vai fazer o Cristo numa nova versão de Ben-Hur, que o russo Timur Bekhmambetov promete para o ano que vem. Para Santoro, é um grande desafio. “O personagem está no imaginário das pessoas, independente de religião.” Bekhmambetov é sempre capaz de surpreender. Sua revisão de Abraham Lincoln como caçador de vampiros não era apenas divertida, mas Ben-Hur? O romance do general Lew Wallace foi filmado duas vezes, a primeira no período silencioso e a segunda, em 1960, quando bateu o recorde de Oscars da Academia de Hollywood. Foram 11, incluindo melhor filme, diretor (William Wyler) e ator (Charlton Heston). O número de prêmios só foi igualado por Titanic, de James Cameron, décadas mais tarde.
Ben-Hur foi marcante numa época em que Hollywood, pressionada pela concorrência da televisão, investiu em grandes espetáculos para atrair o público às salas de cinema. O filme conta a história da rivalidade entre dois antigos amigos que se tornam inimigos mortais, o príncipe judeu Judá Ben-Hur e o tribuno romano Messala. Cristo aparece pontualmente. Dá água ao sedento Judá, quando, traído pelo amigo, está indo para as galés; cura as chagas da mãe e da irmã do herói, ambas convertidas em leprosas. Cristo só aparece de costas. O que importa é o efeito do que se presume seja a força de seu olhar sobre Judá, sobre a mãe e a irmã. Sem dar a cara, como se diz, o ator que faz o papel ficou esquecido. Poderia ser qualquer um. É um certo Claude Heater. Pela cabeleira, certo detalhe de barba, percebe-se que é um Cristo talhado segundo a iconografia tradicional, como Jeffrey Hunter em O Rei dos Reis.
Ainda nos anos 1960, Pier-Paolo Pasolini, homossexual assumido e marxista, fez sensação com a sua versão do Evangelho Segundo Mateus. Seu Cristo era um estudante espanhol, Enrique Irazoqui. Era frágil, fisicamente, mas crescia na cena em que o personagem expulsa os vendilhões do templo. E Pasolini, ao contrário dos épicos hollywoodianos, com suas trilhas grandiloquentes, filmou em preto e branco, usando spirituals. Antes disso, já fizera o episódio La Ricota, de Rogopag/Relações Humanas, com Orson Welles como diretor de um filme inspirado na Paixão de Cristo e o ator que faz o ladrão, não Jesus, morre na cruz. Na sequência, veio o Cristo irado de George Stevens, em A Maior História de Todos os Tempos. Era interpretado por Max Von Sydow, o ator suecos dos filmes de Ingmar Bergman, aquele mesmo que, em O Sétimo Selo, fez o cavaleiro medieval que se media com a Morte, num jogo de xadrez. A impressão é de que Stevens quis contar a maior história por uma só cena – a ressurreição de Lázaro. Como no recasamento de Rock Hudson e Elizabeth Taylor em Assim Caminha a Humanidade, que havia feito dez anos antes, em 1956, é a vitória das segunda chance.
Houve muitos outros Cristos, depois. Ted Neeley até cantou e dançou no musical Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewison, mas na época, o começo dos anos 1970, causou muito mais sensação o fato de o Judas do diretor ser representado por um ator negro. Não muito tempo depois, Franco Zeffirelli fez sua versão para TV, Jesus de Nazaré, que chegou aos cinemas e o curioso é que seu Cristo, Robert Powell, havia sido contratado para fazer Judas. Só em cima do início da filmagem, o diretor decidiu-se pela troca, um pouco dando razão aos que dizem que Judas é fundamental nessa história. Sem ele, o filho de Deus não cumpriria seu papel. O canadense Denys Arcand, em seguida, recorreu a um grupo de teatro para encenar, também na cena contemporânea – havia até tanques de guerra e helicópteros em Jesus Cristo Superstar – , a história de Jesus de Montreal, interpretado por Lothaire Bluteau. As abordagens diversificaram-se. Martin Scorsese filmou A Última Tentação de Cristo, em que Willem Dafoe desce da cruz para viver sua história de amor com Maria Madalena (e gerar a descendência que termina na Audrey Tautou de O Código da Vinci).
Mais polêmico de todos, o homem Jesus de A Paixão de Cristo, de Mel Gibson – Jim Caviezel –, é massacrado, moído fisicamente. Choveram acusações de antissemitismo ao astro-diretor, os críticos rejeitaram sua (re)visão histórica, mas não era o caso. Mel Gibson filmou o massacre do indivíduo por suas convicções. É o Cristo mas poderia ser, quem sabe, o Che, que Hollywood, por sinal, representou com as barbas e os cabelos compridos do Cristo, e o olhar pacífico de Omar Sharif, na versão de Richard Fleischer para a saga do lendário guerrilheiro. Até um, ateu de carteirinha fez o seu Cristo – Luis Buñuel, em O Estranho Caminho de São Tiago. Nunca houve um Cristo como o dele, que saltita diante da câmera, agita as melenas. O mistério do personagem percorre todos esses filmes. Cada um O decifra de um jeito. E você não precisa necessariamente ‘acreditar’ para ser tocado pela experiência humana e religiosa do Cristo. Afinal, é um personagem essencial das artes, da pintura do Renascimento ao cinema dos séculos 20 e 21.
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