Sem nhenhenhém – Vinicius de Oliveira lembra o set de Central do Brasil, clássico de Walter Salles que venceu o Urso de Ouro em Berlim (1998) e colocou Fernanda Montenegro na disputa do Oscar. “Fátima Toledo fez minha preparação, mas eu não era um garoto dócil, fácil de ser adestrado. Era marrento. Apesar da minha história, a Fernanda percebeu que ter peninha não ia ajudar em nada. Criou uma Dora marrenta, também.” Fernanda foi melhor atriz na Berlinale, foi a única brasileira indicada para o Oscar da Academia, mas hoje, passados 24 anos, quando se assiste ao filme, o que impressiona é a expressividade do rosto de Vinicius. Taco no taco com a maior atriz brasileira.
Vinicius de Oliveira, 37 anos, dois filhos – meninos – de 9 e 7 anos. Quem conversa com o Estadão, no café do cine Itaú Augusta, não é mais o garoto, mas o homem. Vinicius integra o elenco de Um Dia Qualquer, de Pedro von Krüger, em cartaz nos cinemas. Faz Maciel, lugar-tenente do miliciano interpretado por Augusto Madeira. É hora de lembrar um pouco a trajetória do ex-engraxate – no aeroporto Santos Dumont, no Rio – que, há alguns anos, aproximou-se daquele cara para oferecer seu ofício. Olhou para os pés dele, estava de tênis. Ia batendo em retirada quando, num impulso, virou-se e disse que estava com fome. “Me paga um sanduíche?” O cara não apenas pagou como ficou observando o garoto. Apresentou-se. “Sou Walter Salles e vou fazer um filme. Estou procurando o ator. Quer fazer um teste?” E deu-lhe o cartão com o endereço da produtora Videofilmes. Vinicius não foi no dia acordado. Esqueceu-se, e de qualquer maneira a mãe vivia alertando contra estranhos. “Era uma época em que rolavam muitas histórias. Gente sequestrada e morta para a venda de órgãos.” Salles não desistiu. Enviou uma van da produção atrás de Vinicius no aeroporto. Desconfiado, o menino perguntou se podia levar os colegas, engraxates como ele, o irmão. Encheram a van. O teste, Vinicius lembra, não foi bom. O assistente ligou para Salles, que insistiu para Vinicius voltar no dia seguinte. O resto é história. A repercussão internacional do filme abriu portas para ele, mas, de cara, não foi exatamente um happy end. “Fiz uma novela, e não fui nada bem. Fiz outras coisas que também não marcaram.” Ele só tomou gosto pela coisa – a interpretação –, e percebeu que era sua praia, ao trabalhar de novo com Salles em Linha de Passe, de 2008.
Teste
Mudou-se para São Paulo. Um dia foi fazer um teste. Ouviu de um amigo que o diretor Von Krüger – ex-assistente de fotografia de Walter Carvalho – estava formatando o elenco para um projeto multimídia. Série, filme. Era Um Dia Qualquer. “Conhecia o Pedro, liguei para ele. Pedro disse que não tinha muito dinheiro, mas gostaria de me ter com ele.” Bora! A primeira temporada foi ao ar, o filme acaba de estrear nos cinemas. Agora é Vinicius quem pergunta – “Gostou?” Um Dia Qualquer enfoca a violência das comunidades, no Rio. Augusto Madeira faz o miliciano que domina, a ferro e fogo, o pedaço. Mariana Nunes, sexy como nunca, é ligada ao tráfico. Madeira mata seu amante, e também é amante dela. Mariana converte-se, vira evangélica. Vinicius, como Maciel, está ali como pau mandado de Madeira.
Pais e filhos
Madeira tem filho vagabundo que, na ausência do pai, faz sexo com a madrasta. Mariana tem dois filhos, um que vira pastor e o outro que desaparece no carro de Madeira. Ela põe a boca no mundo, vai à polícia. A ordem agora é eliminá-la. “A série tinha seis episódios. O filme teve uma primeira versão, que vi, e ganhou outra montagem que só vou ver numa sessão no Rio.” No dia 28, no Itaú Augusta, haverá debate em São Paulo. Pedro trabalha com estereótipos. O miliciano, o traficante, a crente, o moleque do passinho. O que faz a diferença é a intensidade das cenas, do elenco. Num momento interessante – revelador –-, o miliciano Madeira ocupa o púlpito do templo evangélico. Está tudo junto, misturado. Para incrementar a ação, olha o spoiler!, o filho do miliciano rouba o revólver do pai, pratica um assalto e é perseguido... pelo pai!
Reverso
Em favor de Von Krüger, pode-se acrescentar que ele filma um Rio que é o reverso do cartão postal. O cenário é Marechal Hermes, no subúrbio, Zona Norte do antiga Capital Federal. Marechal Hermes surgiu como bairro operário, abriga uma Vila Militar. “É importante estabelecer a diferença entre favela e comunidade. Um Dia Qualquer é sobre as comunidades e o poder das milícias”, define Vinicius. Uma segunda temporada da série começará a ser gravada. ...E? “Não posso contar nada, só digo que quem não morreu estará de volta e o meu personagem...” Vinicius faz um arco para cima – dispara! Ele merece.
Ao chegar ao Café Fellini – a área toda está em litígio e o anexo do Itaú Augusta pode ser demolido com metade da quadra, para sediar um projeto imobiliário, mas essa é outra história –, Vinicius conta que estava ministrando uma aula de teatro. Online, porque algumas crianças da escola particular na Vila Mariana testaram positivo. “Sou amigo da diretora e, no ano passado, os alunos resolveram montar uma peça na formatura. Ela me chamou para ajudar. Tínhamos três semanas de preparação e a peça era O Auto da Compadecida. Achei que não ia dar, mas eles me surpreenderam. Propus, e o teatro virou curso alternativo. Estou muito feliz com a minha garotada.”
Que uma coisa fique registrada. “Lá atrás, quando me iniciei, era quase um mantra. Todo mundo nas entrevistas me perguntava sobre o destino trágico de Fernando Ramos da Silva, o Pixote do clássico de Hector Babenco. Queriam saber se eu não tinha medo que ocorresse o mesmo comigo. O Walter (Salles) me ajudou muito e à minha família, fez questão que eu estudasse. Hoje sou pai, tenho a guarda compartilhada de meus filhos, tenho uma carreira. E foi com o Walter.”
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