'O Amor é Estranho' mostra relação madura entre dois homens

O diretor Ira Sacks e o roteirista brasileiro Mauricio Zacharias falam das dificuldades da união entre iguais

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Numa entrevista por telefone, de Nova York, o diretor Ira Sacks e o roteirista Mauricio Zacharias, de O Amor É Estranho, contaram que tiveram a chance, no início de sua parceria, de assistir a dez ou 12 filmes de Yasujiro Ozu, numa retrospectiva dedicada ao grande diretor japonês que se realizava em Nova York. “Foi uma experiência decisiva para ambos”, define Sacks. “A arte de Ozu é feita de modulação, de coisas não ditas e subentendidas. Não posso dizer que houve uma influência específica, mas com certeza estávamos num ‘mood’ que servia ao espírito do nosso filme.”

O Amor É estranho estreou nesta semana, mais de um ano depois de integrar a programação do Festival de Berlim de 2014 (na mostra Panorama). Por suas qualidades, que são muitas, Love Is Strange talvez tenha sido o filme que faltou no recente Oscar. Poderia ter concorrido nas categorias de filme, direção, atores – no plural. John Lithgow e Alfred Molina formam o par de protagonistas, dois gays de meia-idade que estão juntos há quase 40 anos. Levam uma vida tranquila, estável. E aí sobrevém a tempestade. Ben (Lithgow) e George (Molina) resolvem oficializar sua união quando estão completando 39 anos de vida conjunta.

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Parece a melhor coisa a fazer, até porque os tempos são outros e hoje existe maior tolerância pelos direitos dos homossexuais. Você leu tolerância? Tão logo eles fazem sua festa de casamento, o colégio religioso em que Ben trabalha o demite. Sem condições de seguir pagando o caro aluguel do apartamento em que vivem, os dois passam a viver da caridade alheia, não propriamente de estranhos, como a Blanche Dubois de Tennessee Williams em Um Bonde Chamado Desejo. George vai morar com amigos vizinhos, Ben é acolhido pelo sobrinho. Na festa de casamento, Marisa Tomei, emocionada, havia dito que os dois eram um exemplo de maturidade e equilíbrio, mas agora com Ben como um corpo estranho dentro de casa sua união com o marido também passa por um cataclismo.

A situação – quem vai ficar com Ben? Com George? – lembra um pouco a de Parente É Serpente, comédia de humor negro do italiano Mario Monicelli em que papai e mamãe também são despejados e começa um jogo de empurra entre os filhos. Ninguém quer ficar com eles, e menos ainda com o casal, que é forçado a se separar. Ira Sacks não sabia da existência do filme de Monicelli. Pede detalhes ao repórter, que lembra a carreira do diretor, seu começo no imediato pós-neorrealismo. Sacks gosta da ideia da proximidade. Para ele, seu filme tem o pé no neorrealismo. “Pegamos pessoas comuns e revelamos o que há de extraordinário nelas, e essa, para mim, é a essência de (Vittorio) De Sica e (Roberto) Rossellini.”

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Mauricio Zacharias, que coescreveu com o diretor O Amor É Estranho e o anterior Keep the Lights On, é um roteirista brasileiro. Colaborou com Karim Aïnouz em O Céu de Suely, que Sacks ama. Ele conta que houve uma sintonia imediata com Zacharias. “Nós nos inspiramos nas histórias de nossos pais, nossas famílias. Minha mãe e meu padrasto viveram juntos por 44 anos. Formaram o casal mais extraordinário que já conheci. Ben e George possuem essa reciprocidade, mas nossa ideia nunca foi olhar para o par gay como se fosse a mesma coisa que um casal hétero. Cada um possui suas especificidades, por mais que o afeto independa de sexo. Por isso, achamos que o filme deveria ser invasivo e ter uma cena de sexo de Ben e George, para que o público pudesse sentir o que ambos estão perdendo.”

Como parceiros artísticos, Sacks e Zacharias são atraídos por histórias de autodescoberta. Keep the Lights On é sobre a crise de outro par gay, determinada por fatores internos da dupla. O que os atraía agora os separa, discutem a relação, eventualmente recomeçam. Em O Amor É Estranho, a crise é determinada por fatores externos, pelo mundo ao redor. E é uma história multigeracional. Envolve pelo menos três gerações. Ben e George representam o amor maduro. São estáveis, compreendem-se. Marisa Tomei e o marido, Darren Burrows, formam o casal intermediário. Apesar dos anos de ligação, ainda não atingiram tudo o que queriam e sonharam, e também ainda não estão naquele ponto de quem desistiu das expectativas. E há o garoto, o filho do casal, Charlie Tahan, que tem a vida pela frente e está descobrindo tudo – o amor, o sexo, as dificuldades de qualquer vida a dois, o preconceito. É um filme muito bonito. 

ENTREVISTA - Ira Sacks - DIRETOR

‘Gosto desses pedaços de vida muito intensos’

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É uma pena que o filme não tenha candidatado os atores ao Oscar. Alfred Molina e John Lithgow estão muito bem. Como você chegou a eles?

Quando escrevíamos o roteiro, Mauricio (Zacharias) e eu sabíamos que nosso filme dependeria muito da química dos atores. Alfred e John nunca trabalharam juntos, mas se conhecem há mais de 20 anos. Têm amigos comuns, viveram em Londres. Como atores, sabíamos que teriam condições de entender e criar esses personagens, mas havia o entorno, e isso a própria ligação dos dois facilitou. Sim, poderiam estar no Oscar ou em qualquer outro prêmio. São grandes.

A história tem um começo e um fim, mas tive a sensação de que o tempo todo Zacharias e você estão mais preocupados com o ‘durante’. Cada cena parece trabalhada isoladamente. Busca o máximo de intensidade. Faz sentido?

Totalmente, e essa é uma lição de Maurice Pialat. Você conhece o diretor francês? Os filmes dele parecem pedaços de vida arrancados não só dos personagens, mas dos próprios atores. Uma coisa meio anticlimática, que também tem a ver com (Yasujiro) Ozu. As pequenas cenas são tão importantes quanto as grandes. Algo meio neorrealista. O que há de extraordinário nas vidas ordinárias (comuns).

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O garoto, Charlie Tahan, também é muito bom...

Existem cenas dele que são decisivas. Charlie era uma aposta muito grande. Vai conseguir? Marisa (Tomei), que o conhecia, sabia do que ele era capaz. Perguntei-lhe – ele é sempre assim, intenso? Ela fez apenas ‘Ahã’. Grande Charlie... / L.C.M.

ENTREVISTA - Maurício Zacharias - ROTEIRISTA

‘Nossos pais serviram de inspiração’

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Como um roteirista brasileiro inicia uma carreira internacional?

Tem a ver com o sucesso de O Céu de Suely, que coescrevi (com Karim Aïnouz e Felipe Bragança), em festivais internacionais. Mas não fui chamado para uma carreira em Hollywood. Ira (Sacks) é um diretor independente, que faz filmes autorais. São estudos de personagens. Não sinto muita diferença de meu trabalho anterior.

Keep the Lights On, sobre outro par gay, era mais sombrio. Tinha drogas, violência, homofobia. O Amor É Estranho é luminoso, apesar de tudo. Foi uma resposta ao filme anterior?

Não o encaramos assim. Nossa vontade foi fazer um filme sobre o amor maduro. Keep the Lights On foi feito com as anotações de um diário de Ira, em outro momento da vida dele. Agora, Ira e o marido são felizes pais de gêmeos, e o filme claramente reflete isso. Mesmo sem querer misturar as coisas, conversávamos muito (Ira e eu) sobre nossos pais. São relacionamentos de longa duração, gente que aprendeu a se conhecer, respeitar e que não perdeu o afeto. Foram inspiradores para que criássemos Ben e George.

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Vocês falam que viram muito Yasujiro Ozu, Maurice Pialat. É um filme de cinéfilos?

É, mas não no sentido de que estivéssemos tentando emular nossos autores preferidos. Ser cinéfilo é um estado de espírito. Os filmes integram nosso inconsciente. Vimos velhos filmes de (Eric) Rohmer e outros mais contemporâneos de Olivier Assayas. Veio essa vontade de falar não só de casais, mas de família, de gerações. O Amor É Estranho é aberto para o mundo. / L.C.M.

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