O "Auto da Compadecida" chega às telas

Estréia dia 15 nos cinemas o filme do mesmo diretor da minissérie transmitida pela TV Globo em 1998, e que consagrou o ator Matheus Nachtergaele

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Por Agencia Estado
Atualização:

Foi preciso bater à porta da toda-poderosa Marluce Dias da Silva. Quando fez O Auto da Compadecida, em 1998, o diretor Guel Arraes já trabalhava, em sua casa, com o conceito da dupla versão - pensava lançar o Auto na TV e, mais tarde, no cinema, numa versão reduzida. o Auto fez o sucesso que todo mundo sabe. Foi considerado um marco na história da televisão. Colocou lá em cima o nome de Guel Arraes como o mais ousado e original diretor de TV do País, consagrou Matheus Nachtergaele como o ator genial que é. Mas não foi tão fácil fazer a redução para cinema. Guel, de qualquer maneira, conseguiu. O Auto da Compadecida estréia no dia 15 em 60 salas. O circuito é formado basicamente de São Paulo para cima. São Paulo, Rio, Salvador, as capitais do Nordeste. O Sul fica para uma segunda etapa. Guel diz que o Auto, na TV, não chegava a ser uma minissérie. “Prefiro dizer que era uma microssérie, só com quatro capítulos.” No total, 160 minutos. Ele cortou 60 - exatamente uma hora. Fez isso numa tarde, apenas. “É o filme que deve ter o recorde do tempo mínimo de duração para o processo de edição - já tinha o Auto do cinema formatado na cabeça, não precisei mais do que cinco horas para fazer essa versão.” Depois ele levou a versão aos amigos. Fizeram algumas sugestões, ele mudou um ou outro detalhe, mas a edição final foi feita nessas cinco horas. Isso foi logo depois que o Auto ficou pronto para TV. A versão do cinema ficou ali ao lado, esperando. Guel achava que o Auto merecia virar filme. “O texto do Ariano (o dramaturgo Ariano Suassuna), o trabalho da equipe, a Globo, todo mundo merecia que o Auto virasse filme; eu merecia.” Mas esbarrou no dinheiro. Embora feita em 35 mm - um processo que encareceu cerca de 15% a produção -, a transposição da série, ou finalização até a primeira cópia para cinema, estava orçada em R$ 400 mil. O dinheiro não podia ser captado pela Lei do Audiovisual e criou-se o impasse. Guel engoliu o orgulho e foi pedir a Marluce Dias, diretora-geral da Rede Globo. Ela liberou a verba. Em seguida, Guel conseguiu o distribuidor do filme - a Columbia, a major de Hollywood que mais investe no cinema brasileiro, por meio do instrumento da remessa de lucros. “Se eu soubesse que teria a Columbia não precisaria bater na porta da Marluce; mas ela foi maravilhosa com o Auto.” Guel está falando no escritório do seu apartamento no 10.º andar de um edifício localizado no Parque Guinle, em Laranjeiras, no Rio. O apartamento é cinematográfico. A sala de estar, muito ampla, possui janelões que se abrem para o parque, lá embaixo, e descortinam a vista da cidade, ao longe. As paredes ostentam quadros de Maurício Arraes, o irmão de Guel, um pintor que ele ama. Na sala passeiam as duas gatas, Kika e Tigresa. O escritório possui uma estante cheia de livros e vídeos - como se poderia esperar de um diretor de cinema e TV. Um livro ao azar - Fassbinder, sobre o autor alemão. Gosta dele, Guel? “Não muito.” De quem ele gosta mesmo, ou gostava, quando se lançou no audiovisual, era da dupla GG. Gláuber e Godard, Godard e Gláuber. Depois vieram as outras preferências - Billy Wilder, Federico Fellini e Carlos Manga, o rei da Atlântida. “Via os filmes dele lá no Crato, mas só tomei consciência disso mais tarde, por meio do Sílvio.” Refere-se a Sílvio de Abreu, um autor que foi fundamental em sua vida, quando ele começou a fazer TV. E Crato, onde seu pai nasceu, no interior do Ceará, era o lugar no qual Guel passava as férias. Conta tudo, desde o começo. Quando o pai, Miguel Arraes, foi exilado, a família foi para a Argélia e, dali, para Paris. Guel, que já havia começado a exercitar-se em cinema, foi trabalhar no Comitê do Filme Etnográfico, um anexo do Museu do Homem, de Jean Rouch. O pai do cinema-verdade, o cinéma-verité, foi o primeiro mestre de Guel. Ele, que já queria fazer cinema, aprendeu com ele. Não tinha contato direto permanente com Rouch, no comitê, mas encontrava-se seguido com ele. Com Rouch aprendeu a dominar a câmera. Temporário - Aprendeu a desmontar a câmera, a limpá-la, a manter os centros de captação da imagem e do som permanentemente ajustados. Imaginava que fosse seguir a trilha do documentário de Rouch. Chegou a fazer Barbs et Palace, em parceria com Ricardo Lua, mas foi parar na Globo. Pensava - “Isso aqui é temporário, quando der um vento eu me mando.” Talvez houvesse aí uma pitada de preconceito. O cinema era arte, a TV, um meio popular. Hoje, Guel está convencido de que é possível fazer arte na TV, mesmo que a programação de massa da televisão seja do gênero de revoltar os intelectuais. O que ele acha é que a TV é a opção cultural da maioria do povo brasileiro e isso cria um compromisso. O temporário virou permanente, mas Guel nunca deixou de ter um olho no cinema. “Era o sonho da minha geração”, ele diz. Uma geração hoje de quarentões (ele tem 46 anos). Começou nas novelas. Foram cinco, das quais ele retém duas, de Sílvio - Guerra dos Sexos e Vereda Tropical. Por meio delas começou a fazer, na Globo, o que não hesita em definir como TV experimental ou metanovela. “Era um conceito do Sílvio - subverter os gêneros, misturar drama e comédia, muitas vezes numa linguagem de chanchada, subverter as próprias imagens dos atores junto ao público; pior exemplo, colocar Paulo Autran e Fernanda Montenegro atirando tortas um na cara do outro.” Nessas novelas o ator olhava para a câmera, falava para o público - era como se houvesse um permanente piscar de olhos para estabelecer a cumplicidade. Foi um grande aprendizado. Mas a novela não era a praia de Guel. “Sou lento” ele explica. A novela exige rapidez. A toda hora é preciso estar tomando decisões, não há tempo para elaboração. Para gravar as 30 cenas diárias, Guel levantava de madrugada, lia e relia o roteiro, ficava antecipando soluções para os problemas que, com certeza, iriam surgir no set. Vivia estressado. Foi quando surgiu Armação Ilimitada. A partir daí, começa a verdadeira história de Guel na TV. Foram três anos de Armação e depois ele não parou mais, sempre inovando. TV Pirata, Programa Legal, Brasil Especial, Comédia da Vida Privada. Nesses programas todos, Guel, como diz, “brincava de fazer cinema”. Selecionando os melhores, ele calcula que tenha feito “uns dez filmes”, embora a versão para cinema do Auto seja oficialmente o primeiro. Admite que possui talento de artista, mas considera seu maior talento o de organizador. Trabalha em equipe, formou a dele, um núcleo em que todos pensam e agem juntos. Destaca Jorge Furtado, com quem completou dez anos de parceria na recente A Invenção do Brasil. “O Jorge é o maior roteirista do Brasil e é um grande diretor de cinema.” Seus curtas, entre eles o ´clássico´ Ilha das Flores, estão entre as melhores coisas já feitas no País. Lamenta que os longas de Jorge, feitos na TV, como Luna Caliente, não tenham tido toda a repercussão que merecem. Quando os dois adaptaram o auto de Suassuna para a TV, a primeira dificuldade foi achar o ator para ser João Grilo. Guel pensava que seria preciso um Pedro Paulo Rangel mais magro (e mais jovem). Matheus Nachtergaele caiu do céu. É o melhor intérprete de Grilo, quem afirma isso é o próprio Suassuna. Matheus veio do teatro, mas Guel confessa que o que pesou na decisão de colocá-lo no papel foi a interpretação de Nachtergaele em Anchetanos, que Jorge Furtado escreveu. Era uma coisa meio memorialista, Nachtergaele colocou no especial sobre um grupo de estudantes durante a ditadura a porção O Que É Isso, Companheiro? Guel diz que, além de ter o physique du rôle, ele é um excelente comediante e era isso que precisava para João Grilo. Na sua cabeça, ao fazer o Auto para a TV, pensando no cinema, ele já sabia o que poderia ser sacrificado. Por sua estrutura picaresca, o auto salta de uma aventura para outra. Algumas do começo podiam ser sacrificadas em prejuízo da compreensão da história. À medida que a narração se encaminha para o fim, para o julgamento, as coisas são mais necessárias. Manteve o enterro da cachorra, mas cortou o episódio do gato que come dinheiro. Cortou um episódio do cangaceiro, no qual Grilo se faz de morto e ressuscita (retirado do Decameron, de Boccaccio, não de Suassuna). E não abria mão do romance. Ele não existe no Auto. Foi buscado em outra obra de Suassuna - Torturas de um Coração, centrada no duelo do covarde com o valentão. O filme está pronto para lançamento. Como será recebido pelo público que viu a micro-série na TV? Guel tem certeza que o Auto merecia ganhar o cinema. A expectativa é de que o público corresponda. Na verdade, o público também merece o Auto no cinema.

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