Opinião | ‘O Bastardo’, aposta da Dinamarca para o Oscar, transforma conflito rural em filme épico

Mads Mikkelsen estrela o longa sobre um capitão do exército dinamarquês que, perto da aposentadoria, busca comprovar que uma terra abandonada pode ser fértil

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Foto do author Matheus Mans

É interessante observar os títulos que acompanham O Bastardo, em cartaz nos cinemas. Na essência, é a adaptação de um livro de 2020, chamado O Capitão e Ann Barbara, fazendo referência ao protagonista e sua companheira. Na versão para os cinemas, ganhou o título de Bastarden (ou O Bastardo), falando mais diretamente sobre a origem desse personagem. Já o título em inglês mudou para The Promised Land. A terra prometida.

São três faces de uma mesma trama – a origem do protagonista, o romance que ele vive e, é claro, seu objetivo final. Os três cabem, os três funcionam, mas nenhum individualmente. Afinal, este novo longa-metragem de Nikolaj Arcel (O Amante da Rainha, A Torre Negra) é um filme com um roteiro pendular: se vale da tal terra prometida, objetivo quase insano do protagonista vivido por Mads Mikkelsen, para falar de amor, sociedade, política. Vida e morte.

A disputa pela terra é o que move a narrativa de 'O Bastardo' Foto: Henrik Ohsten Zentropa/Divulgação

A jornada de Ludvig

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Tudo começa com Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), um capitão do exército dinamarquês que, já perto da aposentadoria, toma uma decisão: comprovar que uma terra abandonada pela Dinamarca, vista como improdutiva, pode ser fértil. A partir daí, nasce uma história sobre política real do século 18 entremeada com a própria biografia do ex-capitão.

Com quase 130 minutos de duração, o filme passeia naturalmente por muitos tópicos. Vai desde a formação da sociedade em séculos passados, passando pela formação de uma família fora dos padrões, até chegar na tarefa agrícola de Ludvig, que logo se eleva para um conflito político, envolvendo ele e um fazendeiro odiável, Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg).

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Depois, porém, o pêndulo volta a balançar: da política retorna para os conflitos internos (e agrícolas), ainda com espaço para algumas discussões familiares que se colocam entre Ludvig e seu sonho. Tudo aqui é instável narrativamente, já que Arcel tem muito a contar sobre esse personagem que de fato existiu. O romance entre o protagonista e Ann Barbara (Amanda Collin), foco do livro, vira secundário. Ainda assim, ajuda a mover o pêndulo.

Reforma social

Arcel, que já havia trabalhado com Mikkelsen no excelente O Amante da Rainha, parece ter também sua própria agenda aqui: tratar dos conflitos sociais envolvendo posse de terras, retornando até tempos quase imemoriais. Kahlen quer ordem, De Schinkel quer caos. No meio desse cabo de guerra está uma terra sem dono e sem leis, esperando para ser cultivada e florescer. Um mostra que isso é possível, outro não quer provar nada. O impasse faz com que o crescimento social seja interrompido e ninguém consiga avançar.

Mikkelsen, como sempre, está pleno em cena: ele consegue saltar entre as diferentes abordagens desse pêndulo temático, sempre encontrando a melhor maneira de demonstrar tudo na tela. O bom elenco de apoio o ajuda nessas diferentes facetas no melhor trabalho do ator dinamarquês desde o inesquecível Druk, de 2020, e a cena final onírica de dança.

'O Bastardo' quase se assume como um faroeste dinamarquês Foto: Henrik Ohsten/Divulgação

Muitos podem enxergar O Bastardo como um filme frio – característica evidente nas produções nórdicas. E é, de fato: Arcel está mais interessado em talhar a narrativa e ter um apuro estético que diga algo do que imprimir emoção aos personagens. Entendemos bem o que quer e o que sente Ludvig Kahlen, mas, ainda assim, não conseguimos senti-lo de fato.

Um problema no filme? Pode ser. Ainda assim, O Bastardo consegue dizer muito nessas mais de duas horas de duração, em uma estrutura narrativa que ousa e, mesmo se passando no século 18 na Dinamarca, pode dizer sobre o que está acontecendo no centro de São Paulo, nas ruas de Los Angeles ou em vários outros lugares do mundo em 2024. Um filme que começa como uma rixa rural e termina, enfim, como um épico, atravessando tempos e histórias.

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Opinião por Matheus Mans

Repórter de cultura, tecnologia e gastronomia desde 2012 e desde 2015 no Estadão. É formado em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com especialização em audiovisual. É membro votante da Online Film Critics Society.

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