Com um toque de Barbara Stanwyck, um suntuoso escritório Art Déco e um batom vermelho mortal, Cate Blanchett interpreta uma mulher fatal em O Beco do Pesadelo, de Guillermo del Toro, trazendo uma visão inteligente e subversiva do arquétipo de filme noir. O longa estreia nesta quinta-feira, 27, nos cinemas.
Se O Beco do Pesadelo é uma carta de amor de Del Toro ao cinema noir, o coração do filme palpita em Lilith, a psiquiatra manipuladora interpretada por Blanchett. A personagem não aparece até o meio do filme, quando Stan, o vigarista vivido por Bradley Cooper, chama sua atenção com um espetáculo mentalista numa casa noturna e os dois começam a conspirar juntos. Mas, ao fazer isso, Blanchett muda a frequência do filme para evocar tons mais profundos em sua rica tapeçaria de sombras e destinos.
“Nós adaptamos o papel para ela, mas aquele vestido serviu perfeitamente logo na primeira tentativa”, disse Del Toro.
Em filmes de época como Carol, O Bom Alemão e O Aviador, Blanchett evocou um tipo clássico de estrela de cinema de meados do século. Em O Beco do Pesadelo, uma adaptação do romance dos anos 1940 levada pela primeira vez ao cinema em um aclamado filme de 1947, ela se desloca no gênero confiando menos na sedução de sua personagem e mais em sua inteligência aguçada.
“O que achei mais oportuno e perigoso nesta história é que se trata de uma exploração da verdade”, disse Blanchett numa entrevista direta de Brighton, Inglaterra. “Interpretar uma personagem tão deliberadamente misteriosa e ambígua me pareceu muito desafiador, porque você tem que saber que muitas coisas estão acontecendo, mas você nunca chega a saber exatamente o que ela está pensando”.
É um dos dois papéis de Blanchett recentes que destaca a fraude e a desinformação americanas. Em Não Olhem para Cima, de Adam McKay, a atriz interpreta uma âncora de noticiário matinal que se esquiva das notícias de um apocalipse iminente para falar de temas mais leves, como o sex appeal do cientista interpretado por Leonardo DiCaprio.
Há algo atemporal na Blanchett de O Beco do Pesadelo, mas para ela os dois filmes se definem por seus temas urgentes.
“Foi um grande privilégio estar em um filme ambientado neste ponto particular da história humana”, diz ela. “É preciso estar sempre atenta ao momento em que se verá o que se está fazendo. Nunca senti isso mais profundamente do que agora, fazendo esses dois filmes”.
Blanchett e Del Toro discutiram vários projetos durante anos, mas a primeira vez que trabalharam juntos foi em O Beco do Pesadelo. A atriz também dubla uma personagem da próxima animação em stop-motion do diretor mexicano, Pinóquio, outro filme sobre dizer a verdade.
Homenagem
Toro sempre quis homenagear o cinema noir. Sua afeição pelo gênero é profunda. Em seu trabalho anterior, A Forma da Água, vencedor do Oscar de melhor filme, ele fez uma referência explícita a Anjo ou Demônio, de Otto Preminger. O cineasta, um ávido colecionador, diz que o retrato na parede de Laura, outro filme de Preminger, é “o único objeto pelo qual mataria”.
“Li tudo de (Raymond) Chandler antes de me casar”, disse Del Toro. “Não sei muito bem por quê”. Del Toro escreveu o roteiro de O Beco do Pesadelo com a crítica de cinema Kim Morgan, com quem ele se casou no início deste ano. Sua preferência pelo cinema noir tende menos para a elegância e mais para o sórdido, filmes que habitam uma psicologia ousada.
“Gosto dessas personagens que são inteligentes demais para seu ambiente, como Bette Davis em A Filha de Satanás”, disse Del Toro.
“Gosto delas não porque acho que elas façam coisas boas, mas porque elas ficam sem recursos naquilo que parece ser um jogo injusto. Este é o noir que eu acho interessante.”
Uma pedra de toque para O Beco do Pesadelo foi Lágrimas Tardias, de 1949, um filme noir bastante cruel que estrela Lizabeth Scott como uma dona de casa que encontra uma mala cheia de dinheiro. Vislumbrando a oportunidade de se libertar do marido e muito mais, a personagem de Scott se apega ao dinheiro. De maneira similar, Del Toro e Morgan imaginaram Lilith dentro do contexto de uma sociedade controlada por homens.
Vingadora
“Francamente, ela é a personagem que eu estava absolutamente louco por criar com Cate”, disse o diretor. “Ela é quase uma vingadora. Dissemos: o que quer que tenha acontecido com ela no passado, ela está corrigindo os erros.”
Para Blanchett, o termo femme fatale sugere uma mulher diabólica, “uma sereia que busca atrair o homem – sempre o personagem masculino – para as rochas para destruí-lo sem outra razão senão o fato de que tem impulsos diabólicos.”
Em vez disso, Blanchett e Del Toro jogaram com gradações sutis nos motivos de Lilith. A atriz achou que uma de suas falas estava simples demais e Del Toro concordou. Mas ele ainda cita o texto com um pouco de tristeza: “Você sabe o que é para uma mulher como eu crescer numa cidade onde o homem mais inteligente não passa de um animal estúpido?”.
“Embora minha personagem não diga nada explícito sobre seu passado, há um sentimento de que ela foi prejudicada pelo sistema, o sistema que ela quer incendiar, e ela vai usar Stan para fazer isso”, diz Blanchett. “Sua confiança nele e nos homens que controlam o sistema é inexistente,” afirma a atriz.
Del Toro filmou as cenas de Blanchett com Cooper como três jogos de cinco a dez minutos, com o movimento e as perspectivas da câmera contando uma história sempre cambiante: um jogo de xadrez que sabemos que Lilith vai ganhar. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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