Georges Gachot conversa com o Estadão por telefone, de sua produtora, em Zurique. O francês de Neuilly-sur-Seine desculpa-se que seu português está enferrujado. “Quase não tenho falado, mas troco mensagens com amigos brasileiros.” Desde 2003, o francês de 59 anos tem deambulado pelo Brasil. Apesar da formação clássica, tomou-se de amores pela MPB e fez documentários com grandes figuras da cultura musical brasileira. Desde o início do mês, a obra documentário musical de Gachot tem ganho espaço na plataforma da Reserva Imovision. Depois de Onde Está Você, João Gilberto? e Maria Bethânia – Música É Perfume, agora é a vez de Rio Sonata – Nana Caymmi e, no dia 23, a estreia será de Martha Argerich – Conversas Noturnas. Gachot tem aproveitado bem o período de isolamento da pandemia. Além de trabalhar no próximo longa, sobre o músico norte-americano Erroll Garner, que gravou bossa nova e imortalizou a clássica Misty, inclusive no primeiro longa de Clint Eastwood como diretor – Perversa Paixão, de 1971 –, ele limpou as matrizes de seus documentários musicais e as entregou à Cinemateca Suíça. Foi na Suíça, em Montreux, que começou a nascer seu caso de amor pelo Brasil, quando ele assistiu a um show de Maria Bethânia. O que era aquela mulher? O curioso é que, a partir daí, uma coisa foi levando a outra. Bethânia levou-o a Nana, Nana a Martinália, Martinália a seu pai, Martinho da Vila, com quem ele fez >Samba, que bem poderia ser o quinto título nessa seleção. E quem o levou a João Gilberto?
“João Gilberto sempre foi inatingível. Fiz filmes sobre artistas considerados difíceis, mas o caso dele é especial. Na verdade, nunca quis entrevistar, formalmente, o João. Queria, talvez, conversar com ele sobre a música clássica, que foi meu primeiro amor. Mozart, Bach. A chave para meu filme do João foi o livro de Marc Fisher, Ho-Ba-La-Lá À Procura de João Gilberto. O Marc fez um livro sobre sua dificuldade para biografar o João. Eu segui sua trilha, é meu filme mais ficcional e num certo sentido o mais difícil, também. Nunca havia estado tão presente, fisicamente, no meu cinema. Foi muito complicado ficar me vendo, durante todo o processo de montagem. Minha montadora, Julie Pelat, foi decisiva. Me ajudou demais.” Apesar do que chama de dificuldade, Gachot guarda um carinho especial pelo filme do João. “É obra de duas pessoas, o Marc e eu, que admiram muito a arte do João e dedicaram parte de suas vidas a tentar encontrá-lo. Num certo sentido, é um filme sobre a saudade de uma coisa que nunca acontece, esse encontro. Os admiradores do João sabem o que é isso.” Esperem – algo acontece, bem no final, mas já na época do lançamento, em 2018, Gachot não gostava de falar sobre o assunto, para evitar spoiler. Um grande documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho, aprimorou a arte da conversa e fez dos encontros o centro de sua obra admirável. Por experiência própria, Gachot sabe que muitas vezes não é fácil deixar uma pessoa confortável numa entrevista. “A Martha (Argerich) nunca gostou de dar entrevistas. Aliás, para o filme com ela nem posso dizer que foi uma entrevista. Foi mais um bate-papo.” A riqueza desses lançamentos no streaming está ligada à sensibilidade, não apenas musical, do diretor. Ele admira os artistas que filma, busca capturar seu movimento interior.
A maneira como Martha toca, como Bethânia e Nana cantam. Nana tem provocado polêmica por seu apoio ao presidente Jair Bolsonaro. Gachot tenta minimizar – “Às vezes a gente tem de se afastar da política, quando gosta muito das pessoas. Eu tenho pessoas na família que têm ideias diferentes das minhas. Vou romper por isso? Nana não canta com menos intensidade por apoiá-lo.” Isso não é ficar em cima do muro? “Nãããooo. A prioridade neste ano é conseguir dar adeus a Bolsonaro”, diz. O documentário sobre Bethânia é narrado pela própria cantora. Foi filmado durante a gravação do disco Que Falta Você Me Faz, dedicado às criações de Vinicius de Moraes, e a turnê do show Brasileirinho, que desde o título expressa o amor da artista pelo País e sua cultura. Em Conversas Noturnas, Martha Argerich olha meio enviesada para a câmera enquanto rolam imagens de suas primeiras apresentações na Argentina e na Europa. Sua autoavaliação: “A gente se prepara 150% para chegar a um rendimento de 60%”. Em Rio Sonata, Gachot compartilha com Nana Caymmi, além do amor dela pela música do pai – Dorival –, o culto a autores clássicos como Debussy, Ravel, Tchaikovski. A música e as pessoas – a arte – movem o homem culto e refinado que ele é. Georges Gachot, seu nome é música? Cinema?
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