Mahito Maki não poderia estar mais vulnerável. A mãe morreu tragicamente em um incêndio, durante os primeiros combates da Segunda Guerra Mundial, e seu pai agora está se casando com a irmã da mulher morta. Assim, é inevitável que o protagonista de O Menino e a Garça, do Studio Ghibli, em cartaz nos cinemas e que concorre ao Oscar de melhor animação, se sinta deslocado. Não se sente mais parte.
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E é aí que o cineasta Hayao Miyazaki, naquele que pode ser seu último filme, entra com toda sua genialidade. Com trama e estética similares ao que vimos em A Viagem de Chihiro (2001), o longa-metragem mostra Mahito se refugiando desse mundo que só entrega o que há de pior – a morte da mãe, a guerra, o envolvimento do pai com a indústria de armas.
O refúgio? Simples: a criatividade. O jovem, depois de passar por um período complicado na casa da tia-madrasta, cuidado apenas por idosas que por ali vivem, desaparece dentro de uma torre que um tio, há muito falecido, ali construiu. O espaço, por mais que traga alguma concretude, é uma zona criativa em que periquitos comem humanos e as pessoas podem transitar livremente entre portas que existem ali, passeando pelo espaço-tempo.
Miyazaki em cena
Esse contexto, de um menino se refugiando em um mundo de ideias enquanto a realidade é maltratada pelo que há de pior entre as pessoas, traz algo bastante autobiográfico do próprio Miyazaki. Ele, que há anos está ameaçando se aposentar, chega em um momento de refletir qual a principal função da fantasia em sua vida e como suas experiências influenciaram esse seu caminho pelo cinema. É, basicamente, uma retroalimentação.
Por exemplo: o filme traz aspectos reais da infância do cineasta, como a relação do pai com a indústria armamentista durante a guerra, memórias envolvendo bombardeios de cidades japonesas e a doença da mãe. Aliás, é a mãe a sua principal fonte de inspirações: o título do longa em japonês é Kimitachi wa Dō Ikiru ka (”Como você vive?”), tirado de um livro que ela o presenteou e que marcou bastante o processo de amadurecimento criativo de Miyazaki. Tudo é interligado.
Por outro lado, ele se coloca dentro do filme para questionar exatamente como a fantasia funcionou em sua vida. “Refúgio ou esconderijo?”, parece que ele pergunta a todo o momento. E, claro, além do personagem do menino, há o cativante personagem da garça, que mente para o garoto a todo o momento. É ela que o faz entrar nessa torre criativa.
“Eu sei que é mentira, mas tenho que ver”, diz Mahito, antes de entrar na torre e embarcar nessa aventura apenas pautada pela imaginação. Oras, isso não poderia ser mais Miyazaki: ele sabe que as realidades que está criando em seus filmes não são verdadeiras. Tudo ali é fabricado para aplacar dores – ainda que ele já tenha dito, em um documentário sobre seu processo criativo, que o “cinema só traz sofrimento”. Mais do que a criatividade, são as mentiras que protegem Mahito, e, por consequência, Miyazaki, do mundo que os cerca.
Além disso, O Menino e a Garça nunca condena as mentiras, tampouco aponta dedos como se fossem o “ópio do povo”. Por mais que grande parte dos personagens veja a fantasia como algo ruim (chegam a dizer que o tio-tataravô endoidou por ler muitos livros), Mahito mostra que não é verdade. É preciso equilíbrio. Também não dá pra inserir elementos do mundo real na fantasia, como periquitos, e esperar que se comportem como tal.
Equilíbrio e esperança
Neste ponto, percebemos a genialidade de O Menino e a Garça, o melhor filme de Miyazaki desde A Viagem de Chihiro: enquanto o mundo reclama de sua possível aposentadoria, o mestre do cinema japonês de animação mostra que precisa de equilíbrio. Não dá para viver mergulhado na fantasia, acreditando que está resolvendo todos os problemas. É preciso ter sua dose de criatividade, mas também é preciso enfrentar o que há lá fora, de frente.
Mahito percebe isso. Miyazaki, na outra ponta da história, nos explica isso – e digerimos isso da maneira que for melhor para nós. Afinal, ele está nos apontando um caminho, mas lá estamos nós, espectadores, mergulhando na mente de Miyazaki na sala de cinema e querendo mais, por mais confuso e pouco inteligível o filme se pareça em algumas cenas.
A resposta final de Mahito, que se assemelha às escolhas das pílulas de Matrix, é o ponto final mais bonito que o diretor poderia fazer: o mundo de fantasia se molda à nossa vontade, a partir de possíveis mentiras, mas ainda há esperança lá fora. É só abrir os olhos.
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