A realidade não para de dar razão a Ken Loach. No momento em que grandes distúrbios da extrema-direita contra imigrantes ocorrem na Inglaterra, chega ao Brasil O Último Pub, tratando justamente da onda de xenofobia que varre a Europa.
O filme fala de um grupo de refugiados sírios que chega a uma pequena localidade no norte da Inglaterra e é mal recebido por parte da população. As primeiras cenas são de agressão aos recém-chegados. No tumulto, uma das moças estrangeiras, Yara (Ebla Mari), tem a câmera de fotografia quebrada por um dos brucutus que não quer ver registrado seu comportamento agressivo.
É o início de uma história que terá dois protagonistas - a fotógrafa síria e o proprietário de um pub chamado The Old Oak (O Velho Carvalho) - mas será encenada, de forma coletiva, por toda a pequena comunidade.
Num primeiro momento, o velho bar será o cenário principal. Nele se reúne um grupo de habitués que, entre goles de cerveja, se dedica à atividade principal de gente desocupada - queixar-se da vida, criticar os outros e suspirar pelos bons tempos perdidos.
A cidade é mesmo decadente. Teve seus apogeu décadas atrás, com a força econômica da mineração de carvão e uma classe trabalhadora unida e poderosa. Com o declínio dessa atividade, a comunidade também entrou em decadência. Mesmo o velho pub, visto por Loach como microcosmo dessa sociabilidade perdida, mostra o ar de já ter conhecido tempos melhores.
Não à toa, seu dono, Tommy Joe Ballantyne (Dave Turner), mantém fechado um salão anexo, outrora um festivo restaurante e agora transformado em relicário. Exibe velhas fotografias, uma homenagem a um passado melhor, de lutas e manifestações sindicais de sua família de mineiros, testemunha de um tempo em que se vivia bem no presente e podia-se esperar um futuro ainda melhor. Esperança nada mágica, ou religiosa, mas construída no esforço e no risco da luta coletiva.
Assim é o cinema de Ken Loach. Mesmo com seus personagens muito bem delineados, é no contexto da coletividade que os indivíduos encontram seu sentido pleno.
O próprio Ballantyne é esse personagem em busca de rumo, assolado por lembranças cruéis, e que só poderá se reencontrar em alguma atividade em benefício da comunidade. E qual é essa comunidade? A dos seus “iguais”? Seus compatriotas ingleses, frustrados pela decadência econômica e tornados amargos pelo ressentimento? Talvez sim, mas não apenas.
Fazem parte dessa comunidade também os recém-chegados que, ele bem sabe, deixaram seu país de origem não por vontade própria, mas por extrema necessidade. Ballantyne, alter ego ocasional de Ken Loach e seu roteirista de sempre, Paul Laverty, é internacionalista. A humanidade é uma só, e não um composto heterogêneo de tribos que competem e combatem entre si, como afirma o consenso contemporâneo.
Assim, uma cozinha coletiva pode funcionar não apenas como solução temporária para alimentar os necessitados, mas como centro de união, ou mesmo de politização de parte significativa da cidade. Tal é a utopia de Ballantyne e ela não surge do nada, mas da sugestão de um grupo de mulheres, que fazem da solidariedade a sua força em tempos difíceis.
Esse tipo de história tem rendido críticas a Ken Loach, cineasta de longa trajetória, estilisticamente diversificada, porém centrada no eixo humanista que nunca o abandonou. Nem mesmo agora, aos 88 anos, e vivendo num momento da humanidade mais propício a inspirar distopias que utopias.
Loach não ignora os males do mundo. Pelo contrário: sabe que eles contaminam até mesmo sua classe social de eleição, a dos trabalhadores. Mas, em meio à desesperança generalizada, busca ao menos um raiozinho de sol entre as frestas que a realidade oferece. Militante, sabe que o desespero produz apenas apatia, depressão e conformismo.
Os filmes de Ken Loach
Ken, ou melhor, Kenneth Loach, vem de longe em sua trajetória no cinema. Seus primeiros filmes foram feitos para a TV inglesa e alguns surpreendem pela precoce ousadia formal. Em Kes (1969), seu primeiro grande sucesso, já mostra a preferência pelos marginalizados - no caso, um menino pobre que cria um falcão. Riff-Raff (1991) é um retrato duro, e ao mesmo tempo amoroso, do chamado lumpesinato. Loach andou em territórios vizinhos, como Agenda Secreta (1990), que evoca a luta do IRA, ou o bem-humorado À Procura de Eric (2009), no qual o ex-jogador Eric Cantona, ídolo do Manchester, serve como guru imaginário para um homem que sente estar desperdiçando sua vida.
Com Terra e Liberdade (1995), talvez seu melhor filme, Loach faz uma revisão da Guerra Civil Espanhola, examinando a rivalidade entre as facções de esquerda que combatiam o fascismo.
Nos últimos tempos, Loach tem se dedicado aos seus efeitos mais perversos do neoliberalismo. Em Eu, Daniel Blake (2016), debruça-se sobre a falência da previdência social inglesa; em Você Não Estava Aqui (2020), sobre o drama do precariado dos entregadores de mercadorias por aplicativo. Agora põe o olhar sobre a onda migratória, que vem sendo muito explorada pela extrema-direita europeia e cuja dimensão histórica também escapa aos ex-mineiros e antigos sindicalizados da pequena cidade litorânea onde se passa a história de O Último Pub.
Ao longo de toda essa trajetória, coroada por duas Palmas de Ouro em Cannes (Ventos da Liberdade e Eu, Daniel Blake), Loach lapidou um estilo sólido em sua carpintaria, do roteiro à fotografia passando pela direção de atores. Descarta o glamour e dá vida e rosto a personagens populares, como este Tommy Joe Ballantyne, interpretado por Dave Turner, um bombeiro aposentado que já havia participado com pequenos papeis em Eu, Daniel Blake e Você Não Estava Aqui.
Em O Último Pub, Turner encara um protagonismo difícil, cheio de nuances e com algumas cenas longas e dramaticamente muito exigentes. Sai-se muito bem - sua fisionomia, maneiras e modo de falar emprestam credibilidade e emoção a esse personagem fascinante.
A visão da crítica
Nem todo mundo gosta do estilo e temática de Ken Loach. Antiquado para alguns, é pouco inventivo e às vezes pouco original e demonstrativo para outros. De fato, algumas passagens deste O Último Pub podem soar um tanto didáticas; algumas cenas, como a do desfecho, parecem menos apoiadas na realidade do que no desejo do cineasta de que a vida fosse mesmo daquele jeito.
Mas, mesmo os que não gostam tanto do velho cineasta inglês, consideram que ele tem lugar importante no panorama contemporâneo. Num mundo em que o mal nem precisa ser procurado porque se exibe orgulhosamente em toda parte, é trabalho árduo procurar com lupa o pouco de luz que ainda justifique a vida em sociedade. Loach cumpre esse papel civilizatório há muitos anos e torcemos para que siga assim e não desanime.
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