NOVA YORK - Não é sempre que duas atrizes têm atuações perfeitas para o mesmo papel no mesmo filme. Mas em A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal, Olivia Colman e Jessie Buckley interpretam uma mulher em capítulos muito diferentes da vida com rara harmonia.
A Filha Perdida, notável estreia de Gyllenhaal na direção, é adaptado de um romance de Elena Ferrante de 2006. Colman interpreta Leda, uma acadêmica britânica de 48 anos em viagem pela Grécia, onde uma família numerosa e um tanto rude interrompe a tranquilidade de suas férias. Mas Leda fica intrigada com uma mãe jovem e enérgica, interpretada por Dakota Johnson. Suas interações alimentam as memórias de Leda de seus primeiros anos como mãe, uma época em que sua carreira também estava decolando. Em flashbacks intercalados, Buckley interpreta a Leda mais jovem.
Colman e Buckley não se parecem muito, mas suas interpretações de Leda são convincentemente sinérgicas. Uma atuação aprofunda a outra, criando um estudo de personagem dividido, mas holístico: duas atrizes, uma Leda. Entre os elogios generalizados ao filme, que estreia no dia 31 de dezembro na Netflix, Colman e Buckley vêm sendo constantemente reconhecidas pelos juris de premiações.
Muito mais do que Leda, Colman, 47 anos, que ganhou um Oscar por A Favorita e um Emmy por The Crown, e Buckley, atriz irlandesa de 31 anos e estrela emergente de Wild Rose, de 2019, compartilham a risada solta e o amor pelo karaokê. Durante uma pausa nos ensaios de Buckley para Cabaret no West End londrino, as duas refletiram sobre compartilhar um dos papéis mais emocionantes do ano numa recente videochamada direto de Londres.
Vocês já se conheciam antes de A Filha Perdida?
Buckley: Cantamos karaokê juntas. Foi basicamente toda a nossa pesquisa.
Colman: Aprendi rápido a não tentar competir com o canto de Jessie.
Quais foram as músicas?
Buckley: Bohemian Rhapsody.
Colman: Um pouco de Adele. Foi bem desafiador.
Buckley: Graças a Deus ela lançou um álbum novo. É tudo que posso dizer.
Colman: É engraçado porque é verdade.
Olivia, foi você que sugeriu Jessie para o papel. O que a fez pensar nela?
Buckley: É tudo culpa sua.
Colman: Quando conheci Maggie, falei: “Quem mais você tem?”. E ela disse, “Não tenho ninguém. O que você acha?”. Então respondi: “Você conhece a Jessie Buckley?” Ela não a conhecia, mas foi e viu Wild Rose, que tinha acabado de sair. Sempre penso em Jessie Buckley. E sempre me emociono.
Buckley: Eu deveria cantar karaokê com mais frequência. É o melhor jeito de entrar nos esquemas.
Colman: Acho Jessie uma atriz muito incrível. Adoro vê-la. Acho que ela é requintada nas escolhas e tem um gosto impecável.
Buckley: Eu sou demais.
Colman: Nós passamos uma semana juntas e nos divertimos muito.
Buckley: Somos muito boas em nos divertir. Profissionais.
Como vocês conseguiram, sem participar de nenhuma cena juntas?
Colman: Jessie e (Jack Farthing, que interpreta o marido de Leda) e as meninas viveram seu próprio filme nos primeiros dez dias. Mas combinamos, e acho que você ficou um pouco mais depois de terminar a sua parte.
Buckley: Sim, eu era basicamente a mãe que não tinha saído em dez anos. Então, quando eles chegaram, eu pensei, “Ahhh!”
Vocês chegaram a conversar sobre suas abordagens?
Colman: Tivemos um telefonema em que nos perguntamos: “Que sotaque vamos fazer?”
Só isso?
Colman: Bom, Maggie não quer subestimar o público. É claro que elas são Jessie e Olivia. Somos pessoas diferentes e estamos interpretando a mesma mulher. Mas é uma mulher em fases diferentes da vida. A gente sempre muda um pouco. Quando vi, pensei que tivemos a mesma reação para o roteiro.
A Filha Perdida mostra um lado complicado e incerto da maternidade que raramente se vê no cinema. Leda tem ambições e desejos que não se enquadram nos retratos convencionais.
Buckley: Isso foi o que mais me encantou. Por que nunca tinha aparecido nas telas? Para mim, é o que eu mais amo na minha mãe e nas minhas irmãs e em todas as mulheres maravilhosas da minha vida. É ver o potencial de todas para além do que projetamos nelas. Ler o roteiro foi dar um grande suspiro de alívio. Minha mãe veio ver o filme no Festival de Cinema de Londres e suspirou profundamente. Pela primeira vez, sentiu que fazia parte de uma comunidade, tipo, “vocês também sentem a mesma coisa, graças a Deus!”. Ela estava diferente naquela noite.
Olivia, você já falou sobre como é uma história diferente de sua própria experiência de maternidade...
Colman: Vivi uma situação diferente da de Leda. Fui amparada. Meu marido foi muito parceiro. Muitas dessas frustrações não existiam. Também precisava ser eu mesma, porque era atriz. Então foi uma grande diferença. Além disso, nem sempre é necessário se basear em algo concreto. Nosso negócio é imaginação. A Jessie não tem filhos, mas faz o papel maravilhosamente bem. Dakota também não tem filhos. Recentemente, interpretei uma assassina (na minissérie da HBO, Landscapers). E nunca matei ninguém.
Vocês chegaram a ver as cenas uma da outra para calibrar sua própria atuação?
Colman: Quando chegamos à Grécia, pensei que talvez devesse ver algumas cenas, com a permissão de Jessie. Estava prestes a apertar o play quando parei e disse: “Oh, isso aqui não está legal, não”.
Buckley: Porque a primeira imagem que você viu foi da minha bunda.
Colman: Não achei justo ver as cenas dela. Só pensei: por que não confiamos uma na outra? A primeira vez que a vi foi em Veneza e foi sua atuação que me fez dizer “Oh”. Ver você foi incrível.
Jessie, o que você sentiu quando viu a atuação da Olivia?
Buckley: Acho que Olivia Colman tem um potencial enorme. Acho que tem uma grande carreira pela frente. Eu ficaria assistindo à Olivia mesmo que ela estivesse só pintando uma parede, sério mesmo.
Colman: Pintei uma parede quando estava grávida. Dizem que nunca se deve escolher cores de tintas durante a gravidez. Estava grávida de nove meses quando disse: “Este quarto tem que ser amarelo!”. Peguei uma escada, mas não consegui tirar as cortinas, então fui assim (faz gestos como se estivesse pintando aleatoriamente). Quando nos mudamos, foi constrangedor entregar a casa naquele estado para as pessoas.
Buckley: Devem ter deixado tudo como estava por anos. Devem ter dito: foi a Olivia Colman que pintou isso. Deve ter virado atração turística. Arte abstrata!
Vocês duas são pessoas naturalmente bem-humoradas, mas, mesmo assim, como atrizes são atraídas por materiais espinhosos e muitas vezes sombrios. Vocês se sentem atraídas tanto pelo drama quanto pela comédia?
Colman: Meu negócio é a comédia mórbida. Adoro. Cobre todo o espectro humano. Todos nós somos um pouco de tudo. Acho que um drama sem risos não consegue ser muito contundente. Você se abre para poder rir um pouco. E aí pensa: me pegaram quando não estava me protegendo. Nos momentos mais sombrios, profundos e tristes, rir é uma libertação.
Buckley: (risos).
TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.