Os bastidores da Palma de Ouro de 'O Pagador de Promessas' há 60 anos

Folclore em torno da premiação é vasto; filme de Anselmo Duarte adaptado de texto de Dias Gomes será exibido e debatido nesta segunda, 23

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Há exatos 60 anos o cinema brasileiro recebia sua principal recompensa internacional. Dia 23 de maio de 1962, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, ganhava a Palma de Ouro, principal prêmio de Cannes, o mais prestigioso festival de cinema do mundo. A data será comemorada com exibição do filme e debate a partir de 19h30 no Cine Satyros Bijou, com presença do ator Antonio Pitanga. Será também exibido às 20h20 no Canal Brasil.

'O Pagador de Promessas', de Anselmo Duarte Foto: Cinedistri

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As comemorações se justificam. Além do significado dessa premiação única para um país sedento de reconhecimento externo, há a improbabilidade dessa vitória. A despeito das suas inegáveis qualidades, ainda espanta que esse texto de Dias Gomes, adaptado para a tela por Anselmo Duarte, tenha superado um conjunto de obras-primas presentes em Cannes naquele ano. Basta lembrar três delas – O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, O Processo de Joana D’Arc, de Robert Bresson. 

Bastidores

O folclore em torno dessa premiação é vasto. Diz-se que o júri ficou dividido entre dois concorrentes e Pagador surgiu como o tertius de conciliação. Outra hipótese é que Pagador seria o representante de uma cinematografia de prestígio à época na Europa – o Cinema Novo. E então teria sido premiado mais por fazer parte dessa onda (o que é um equívoco) e menos por suas qualidades intrínsecas. Verdade que o Cinema Novo não tinha ainda lançado suas obras-primas, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, realizadas e exibidas entre 1963 e 1964. Mas o movimento já gozava de renome e tinha-se como certo que o representante brasileiro em Cannes seria o impactante Os Cafajestes, de Ruy Guerra, filme original e irmão de alma da nouvelle vague francesa. 

Além do mais, Glauber Rocha, o profeta do Cinema Novo, recusava a obras como Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, e ao próprio O Pagador de Promessas, carta de cidadania no movimento que liderava. O Cinema Novo viera para revolucionar forma e conteúdo, e os dois filmes, para os cinemanovistas, eram ainda excessivamente tradicionais, vinculados a uma estética herdada do cinema norte-americano ou aparentada à Vera Cruz, companhia paulista de sotaque europeu, mesmo ao filmar temas nacionais.

Hoje essas discussões parecem um tanto desbotadas. Revisto, O Pagador de Promessas poderá até reavivá-las, talvez sob nova perspectiva. Permanecem a eficiência com que a história é contada, a pegada épica e socialmente ambiciosa do cinema brasileiro de então, a beleza da fotografia (do britânico Chick Fowle), a qualidade do texto, a força do elenco. A começar por Leonardo Villar, que encarna com garra o personagem Zé do Burro. Quando seu animal de estimação fica doente, ele faz uma promessa no candomblé a Santa Bárbara. Conduziria a pé uma cruz até Salvador e entraria com ela na igreja católica. Mas, ao saber que a promessa fora feita num terreiro, o padre, vivido por Dionísio Azevedo, impede a entrada de Zé do Burro. Como ninguém cede, surge o impasse, com desfecho trágico. 

Numa época de intolerância religiosa e regressão cultural, essa história de embate entre a força popular e a ordem estabelecida ganha nova (e triste) atualidade.

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