Você pode até não concordar, mas ouvem-se coisas divertidas, intrigantes, no ambiente da Mostra. Um espectador cravou que Coringa, de Todd Phillips, é o Bacurau que deu certo – certamente alguém que não admira o belo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O júri do Festival de Cannes, em maio, presidido por Alejandro González-Iñárritu, deve ter pensado a mesma coisa, ao outorgar a Palma de Ouro a Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho. Pois se pode muito facilmente estabelecer pontes entre Parasita, a grande atração deste domingo, e Coringa, que segue sua carreira triunfal nos cinemas.
Parasita estreia nas próximas semanas, o que significa que você talvez não precise correr para ver o filme na Mostra, podendo dar preferência a outros programas sem garantia de lançamento. Mas o Joon-ho, mesmo não sendo tão bom quanto The Host/O Hospedeiro e Okja, no fundo pode muito bem ser definido como uma soma dos dois, mas com monstros humanos. Conflitos sociais – a luta de classes? – na Coreia. Uma família pobre, que habita o subsolo, outra rica.
Simetria perfeita – ambas são formadas por pai, mãe e um casal de filhos. Na mansão que tem um compartimento secreto, há também uma escada, e ela se torna quase uma personagem à parte. Os pobres ocupam espaço na casa dos ricos. O filho e a filha como babá e instrutor das crianças. O pai pobre vira motorista, a mãe vem para ocupar o lugar da governanta. Você pode até pensar que são os parasitas óbvios. Joon-ho não pensa exatamente assim. Os ricos precisam dos pobres, e os parasitam. Os ricos precisam de gente para explorar.
Essa descoberta leva a uma reação (olha o spoiler!) no desfecho explosivo de Parasita, mas é no Coringa de Phillips – que venceu o Leão de Ouro em Veneza, outorgado pelo júri presidido por uma diretora que representa o suprassumo do cinema autoral, Lucrecia Martel – que os excluídos vão à forra e instalam o pandemônio em Gotham City. O que os dois filmes têm em comum é a crítica ao sistema socioeconômico baseado na exclusão, ou vá lá que seja – na desigualdade.
São filmes importantes, mas a 43.ª Mostra, ao homenagear Luiz Rosemberg Filho, está aí para lembrar que, em 1978 – há 41 anos –, ele já advertia sobre o perigo em Crônica de Um Industrial. O filme com Renato Coutinho e a futura escritora Ana Maria Miranda – participação especial do lendário Wilson Grey – nunca teve lançamento comercial nos cinemas, pois entrou no índex das obras proibidas pelo regime militar. Para as novas gerações de espectadores, poderá ser uma descoberta.
Rosemberg Filho, um autor exigente, adquiriu fama de ‘maldito’. Morreu em maio, aos 75 anos. Longe de ser uma relíquia, Crônica chega a ser escandalosamente atual. Um empresário nacionalista morre e o filho, seu herdeiro, liquida a fábrica do pai, vendendo-a a troco de banana para uma multinacional. Na época, e deve ter sido o estopim da rejeição ao filme, o diretor incorporou ao relato imagens e depoimentos de operários que reclamavam das duras condições de trabalho nas obras do metrô do Rio. De nada adiantou Rosemberg Filho ter criado um país fictício – San Vicente. Como no Eldorado de Glauber Rocha, Terra em Transe, todo mundo sabia de quem e do que ele estava falando. Para evitar o panfleto, ele incrementa o drama fazendo seu protagonista oscilar entre a mulher e a amante. Uma se suicida e a outra o abandona.
Se o tema é forte, a narrativa é inovadora. Rosemberg filho foi um mestre do experimentalismo e da invenção, e outra prova disso foi o brilhante Guerra do Paraguay, de 2015.
O domingo é pródigo em mais obras merecedoras de atenção. Dois filmes de Berlim, em fevereiro, inscrevem-se sob o signo da provocação. Em Deus É Mulher, Seu Nome é Petúnia, de Teona Strugare-Mitevskaz, da Teona Strugare-Mitevskaz,, uma mulher vence uma disputa esportiva, no contexto de um evento religioso que só os homens poderiam ganhar. Vai presa, e inicia uma guerra contra o poder político e religioso.
Monos, do colombiano Alejandro Landes, propõe outro tipo de guerra. Um grupo de jovens recebe treinamento militar. A disciplina é dura e o diretor, que admitiu as influências de Ciro Guerra e Francis Ford Coppola, aproxima-se curiosamente de um livro cultuado de William Golding que Peter Brook transformou em filme idem, O Senhor das Moscas. Na trama de Landes, os membros da chamada ‘Organização’ devem vigiar uma prisioneira e uma vaca leiteira. A morte acidental da vaca, seguida de um ataque inimigo, leva os jovens a se embrenharem na selva, onde seu senso de disciplina (e lealdade) será colocado à prova.
E ainda tem Hálito Azul, o documentário de Rodrigo Areias sobre uma comunidade de pescadores nos Açores. Híbrido de documentário e ficção – adaptada de Os Pescadores, de Raul Brandão –, o filme foi rodado na vila da Ribeira Quente, onde o professor prepara a montagem de uma peça com seus alunos.
O filme possui um encanto todo particular. Ao mesmo tempo em que discute como o vulcão vizinho compromete a pesca local – ecos de Stromboli, de Roberto Rossellini –, passa o ritmo do tempo nas ondas, no vento. Para quem entra no clima, é mágico.
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