Faltam poucas horas para a estreia mundial de Noite passada em Soho, de Edgar Wright, no Festival de Cinema de Veneza, e Wright está com os olhos marejados. Ele está contando uma história sobre Dame Diana Rigg. É uma boa história, com soda e Campari no último dia em que se viram. A maioria das histórias que envolvem Rigg tem bastante soda e Campari.
É uma história que ele já contou antes e que certamente vai contar de novo, porque, algumas semanas depois daquele encontro, ela morreu, aos 82 anos de idade. Mas era um longo dia que ainda não tinha acabado e Wright sabia muito bem que é impossível separar este filme, um projeto apaixonado de mais de dez anos feito a partir da experiência surreal de não só trabalhar com uma estrela que representou o glamour dos anos 1960, mas também fazer amizade com ela e perdê-la.
Mas se já houve um filme adequado para a reflexão sobre o passado e o presente, a fantasia e a realidade, este filme é Noite passada em Soho. A estilizada história imagina uma jovem estilista obcecada pelos anos 1960, Eloise (Thomasin McKenzie), que se muda para estudar em Londres. Quando ela encontra um quarto para alugar numa casa antiga no Soho, ela começa a ter sonhos cada vez mais realistas sobre a época e uma aspirante a cantora, Sandie (Anya Taylor-Joy) – e os sonhos, que começam como uma bela diversão regada a champanhe, acabam tomando um rumo sinistro. O filme estreia nos cinemas sexta-feira.
“O filme fala essencialmente sobre os perigos da nostalgia”, disse Wright. “Não existe uma década mágica onde tudo foi ótimo. É uma falácia sugerir esse tipo de coisa”.
É um desvio emocionante para Wright, que ficou conhecido por um tipo particular de humor referencial, e um projeto em que vinha pensando há algum tempo. Ele elaborou a história, a trilha sonora e tinha uma “lista telefônica” cheia de entrevistas com pessoas que viveram, trabalharam e beberam em lugares do Soho, como o Café De Paris, ao longo dos anos. Mas quando ele finalmente se sentou para escrever, ficou só olhando para a página em branco.
A ajuda viria na forma da roteirista Krysty Wilson-Cairns, que ele conheceu na noite do Brexit e que também trabalhava num pub do Soho (The Toucan, que aparece com destaque no filme). E por seis semanas, fechados numa salinha alugada no Soho, eles escreveram o roteiro.
“Eu tinha imaginado todas as cenas dos anos 60 como uma coisa meio silenciosa, como se fossem conjuntos musicais”, disse Wright. ‘A Krysty disse: acho que não vamos conseguir nos apaixonar por Sandie se não ouvirmos a voz dela’. E isso mudou muito a dinâmica”.
Wright tinha imaginado Taylor-Joy como Eloise. E até disse isso a ela quando a conheceu em 2015, quando ela estava estourando depois de sua atuação no terror indie A Bruxa. Mas quando eles começaram a desenvolver Sandie como uma personagem mais rica, ele percebeu que o papel era dela.
“Eu só a tinha visto em outros filmes e nos tapetes vermelhos”, disse Wright. “Ela parecia uma estrela do cinema mudo, não é?”. Isso significava que ele agora precisava de uma Eloise. Aí alguém sugeriu McKenzie, de 18 anos.
“Foi definitivamente um projeto que eu persegui. Não foi oferecido a mim”, disse McKenzie numa ligação por Zoom direto de um lockdown na Nova Zelândia. “Eu estava num estágio muito semelhante na minha vida... Ela é uma jovem com grandes aspirações, grandes esperanças, um pouco tímida e insegura, mas determinada a provar a si mesma e fazer seu caminho na cidade grande, mas meio que sobrecarregada com tudo o que veio com essa jornada”.
Os paralelos não param por aí. Não apenas ela e sua personagem chegam a Londres aos 18 anos, sua avó é interpretada por Rita Tushingham, que fez A Taste of Honey quando tinha 18 anos, em 1961.
“Eu amei o relacionamento entre Ellie e sua avó. Morei com minha avó a vida inteira. Ela tem 94 agora”, disse McKenzie. “De certa forma, fiz este filme em homenagem à carreira dela”.
A avó de McKenzie é a atriz Kate Harcourt, que se tornou dama na Nova Zelândia por suas contribuições para o teatro. Como no filme, o passado e o presente sempre estiveram em diálogo.
Wright também escreveu um papel importante para outro nome importante da época, Terence Stamp. É um aceno não apenas para os atores que ele cresceu amando, mas também um reconhecimento de que muitas dessas estrelas do passado ainda são vitais e estão trabalhando hoje. Em Soho, Rigg, Stamp e Tushingham não estão lá apenas para “marcar presença”, disse ele. São papéis essenciais que todo mundo gostaria de ter. As histórias sobre trabalhar com Federico Fellini e William Wyler e o almoço com Tushingham e Richard Lester eram só um bônus.
Ele aproveitou principalmente a oportunidade de homenagear e expor uma era que tem sido cada vez mais reduzida a algo como uma falsa novidade.
“É uma coisa que eu sinto nos sonhos, que eu nunca vi em filme: o que aconteceria se você voltasse e vivesse indiretamente, por meio de outra pessoa, como se fosse só uma testemunha? Tipo, você está lá e está vendo tudo, mas não pode fazer nada”, disse ele. “Se fazer um filme é como estar no divã do terapeuta, se você não pode mudar o passado, então você só pode lidar com o passado no futuro. Então é isso que o filme está dizendo. Não importa o que você faça, você não pode voltar no tempo e mudar as coisas. Você tem que lidar com o presente”.
No último dia em que ele viu Rigg, ela estava acamada. Eles tomaram um gole de Campari com soda e conversaram por uma hora. Wright estava trabalhando com seu editor quando chegou a notícia de que Rigg tinha morrido – quase exatamente um ano antes de o filme estrear em Veneza.
“Naquele dia”, disse ele, “colocamos a dedicatória no início do filme”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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