Quando entramos em uma sala de cinema para assistir a algum filme do grego Yorgos Lanthimos, há consciência de que não encontraremos algo normal. Ele já deixou isso claro com Dente Canino (2009), O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017).
São longas estranhos, desconfortáveis, exagerados, bizarros. No entanto, ainda que Dente Canino seja seu filme que mais cause asco, nenhum consegue ser mais bizarro do que Pobres Criaturas, que chegou aos cinemas nesta quinta, 1º.
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Onze vezes indicado ao Oscar (e absurdamente esnobado com outras duas indicações, de ator coadjuvante para Willem Dafoe e para efeitos especiais), o longa-metragem tem um começo confuso. Bella Baxter (Emma Stone) é uma mulher formada, mas seu comportamento não reflete isso.
É como uma criança em desenvolvimento. Está começando agora a andar, a se comunicar. Seu “pai” (Dafoe) é chamado de Deus e, pela casa, circulam animais bizarros – um deles é uma mistura de cão com pato.
O que está acontecendo? Bem, Yorgos Lanthimos está acontecendo. A história é, basicamente, um estudo fantasioso sobre a formação de consciência acelerada. É Frankenstein, mas sem a inocência dolorosa do monstro. É Metrópolis, mas sem todo aquele requinte de Fritz Lang. É um profundo estudo de personagem de uma mulher (ou seria um monstro moderno?) tentando sobreviver conforme o mundo se abate contra ela.
Afinal, Bella pode não estar se incomodando sobre como esses homens em sua vida tentam interferir em tudo, mas é quase impossível para o espectador ignorar o desenvolvimento da protagonista. Em um mundo governado por homens, em que Deus é essa figura paterna, a salvação é o sexo – ainda que o prazer seja algo discutível aqui.
Desenvolvimento da criatura
Pobres Criaturas é um filme livremente inspirado no célebre romance de 1992 de Alasdair Gray, escritor escocês condecorado com os prêmios Whitbread e o Guardian Fiction. A essência da jornada de Bella está no filme, mas muito foi alterado – principalmente o foco da história, que sai do olhar dos homens para ser o da própria Bella. O roteiro de Tony McNamara também tira muito dos comentários do livro sobre a Escócia.
“Decidimos que seria a história dela, o filme dela”, disse Lanthimos, em entrevista para o CineEuropa. Essa se revela como a decisão mais acertada de todas: o filme deixa de ser apenas um estudo de personagem e de comportamento (algo que Dente Canino, de alguma maneira, acaba sendo) para se tornar um comentário social afiado, ainda que estranho.
Assim, depois que temos essa personagem adulta em corpo de criança estabelecido, nos lançamos em outra jornada; agora, de Bella enfrentando o que há no mundo. É basicamente uma observação de Lanthimos sobre como as pessoas enfrentam o mundo. O homem é o lobo do homem? Afinal, a personagem pode ser a pessoa mais ingênua e sem maldade do mundo, mas a própria barbaridade acaba se abatendo contra a sua vida.
Ela conhece um “novo amor” (na figura de Mark Ruffalo, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante), que basicamente serve de trampolim para que ela conheça mais os prazeres mundanos. E descobre que maldade e sofrimento existem no mundo, assim como a beleza.
Tudo isso é acompanhado de efeitos especiais charmosos, que não buscam realismo, mas sim amplificar o sentimento de que há um conto (de fadas, talvez?) sendo exibido aqui. O próprio Lanthimos já disse estar interessado em fazer filmes com estéticas que sirvam à maneira de como quer contar suas histórias, levando, talvez, a lugares mais extremos. E é o que acontece aqui.
Dessa forma, nesse conjunto de falas e discursos, Pobres Criaturas se torna um interessante diálogo sobre a libertação feminina, longe de amarras e tabus. Bella Baxter existe, simplesmente, longe de qualquer necessidade de comprovar algo em seu corpo já maduro. Ela se afasta com repulsa das obrigações e abraça com prazer as necessidades.
O próprio filme busca nos confrontar o tempo todo com nossas ideias mirabolantes com a exposição do corpo de Stone, a protagonista, em cenas de nudez sem qualquer pudor. É como se Lanthimos nos questionasse: ela faz isso por querer; por que devemos julgá-la?
Só é preciso lembrar, porém, que ela é uma personagem que passa pelo olhar de três homens diferentes antes de chegar à tela – do diretor, do roteirista e, claro, do autor do livro. (Em entrevista ao Estadão, Emma Stone, que também é produtora do longa, falou sobre o assunto - confira aqui).
Dessa forma, Pobres Criaturas é um filme que não tem medo de falar sobre coisas difíceis. Aborda temas complexos, desde o existencialismo até o questionamento sobre o que é Deus, passando pela liberdade sexual, a exploração da mulher, a maldade intrínseca do mundo e o nascimento da bondade.
Nem sempre Lanthimos e McNamara são felizes nessas discussões, cortando várias pela metade – principalmente toda a trama envolvendo Dafoe e seu Deus. Mas, quando é feliz em sua discussão, não poderia ser um filme melhor.
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