Emilia Pérez parecia ser o filme certo, no momento certo, na disputa ao Oscar 2025. Marcada para o dia 2 de março, a cerimônia de entrega do principal prêmio da indústria cinematográfica mundial ocorrerá cerca de 40 dias após o início do novo mandato do presidente americano Donald Trump.
O presidente trava uma batalha contra a chamada cultura woke, termo que virou, para o bem ou para o mal, sinônimo de políticas liberais ou de esquerda, que defendem pautas como igualdade racial e social, feminismo e o movimento LGBTQIA+.
Com 13 indicações, um recorde da edição deste ano e também para filmes de língua não inglesa, incluindo o de Melhor Filme e o de Melhor Atriz para Karla Sofía Gascón, o longa do diretor francês Jacques Audiard tinha tudo para, então, ser uma resposta do wokismo e da Academia do Oscar contra as políticas de sufocamento de imigrantes e da população LGBTQIA+ impostas por Trump em seus primeiros dias de governo. Tudo desmoronou na velocidade de um tuíte. E antes mesmo de o filme chegar aos cinemas brasileiros - a estreia será nesta quinta, 6.

A narrativa de Emilia Pérez mistura vários gêneros, com segmentos musicais, e conta a história de Rita (Zoë Saldaña), uma advogada de um grande escritório que recebe uma inesperada proposta: o líder de um temido cartel, Manitas (Karla Sofía Gascón), a contrata para ajudá-lo a se retirar de seu negócio e realizar um plano que vem preparando secretamente há anos: tornar-se a mulher que ele sempre sonhou ser.
Karla Sofía Gascón, a estrela de Emilia Pérez, fez história ao se tornar a primeira atriz trans indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Ela concorre contra outras quatro adversárias na categoria, incluindo Fernanda Torres, de Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, além de Demi Moore (A Substância), Mikey Madison (Anora) e Cynthia Erivo (Wicked).
Gascón se tornou um dos nomes mais comentados das últimas semanas. Boa parte das notícias sobre ela, porém, agora, gira em torno de suas declarações polêmicas – recentes ou não.
Desde que a polarização entre os filmes foi estabelecida, a atriz espanhola se mostrou incomodada com os ataques que vem sofrendo nas redes sociais, boa parte vinda de brasileiros, que enxergaram Emilia Pérez como o grande adversário de Ainda Estou Aqui. Os dois, afinal, são concorrentes diretos também nas categorias de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional.
Torres saiu em defesa da colega publicamente. “Não vamos tratar ninguém mal e criar uma coisa de um contra o outro, pelo amor de Deus. Não vamos alimentar ódios, ok?”, disse a brasileira, por meio de um vídeo publicado no Instagram.

Isso em meio a outras questões. Emilia Pérez já havia sido acusado pelo público LGBTQIA+ de ser um filme transfóbico. Por sua parte, os mexicanos não gostaram de se verem estereotipados nas telas. Em uma entrevista desastrosa, o diretor francês Jacques Audiard afirmou que o espanhol, idioma falado no filme, é típico de “países modestos e subdesenvolvidos” e falado por “pobres e imigrantes”.
Leia também
Nas redes sociais, declarações antigas viram munição
A grande bomba, no entanto, foi a própria Gascón quem detonou. Em uma entrevista para a o jornal Folha de S. Paulo, a atriz afirmou que a disputa com Torres não é uma “competição”, mas que se sentia incomodada com “pessoas que trabalham com Fernanda Torres que falam mal de mim e de Emilia Pérez”. “Isso fala mais deles e de seu filme do que do meu”, completou.
Gascón, até o momento, não provou as acusações feitas contra a equipe da brasileira. Em comunicado enviado à Variety, horas depois, ela negou que se referiu a pessoas “diretamente associadas” a Torres, mas sim à “toxicidade e aos discursos de ódio violentos nas redes sociais”. O Estadão procurou a assessoria do filme Ainda Estou Aqui, que preferiu não comentar as declarações da atriz espanhola.
Para o professor e crítico de cinema Waldemar Dalenogare Neto, Gascón violou a regra 4 de campanhas para o Oscar, a que fala sobre acusações falsas imputadas a filmes, atuações e conquistas.
“Essa informação falsa pode afetar a percepção do filme entre os votantes. Apesar de ter retirado essa acusação horas depois, ainda assim penso que a Academia pode adotar um procedimento interno, no mínimo “, afirma Dalenogare ao Estadão.
Ele explica que dois procedimentos podem ser adotados, caso haja uma denúncia formal contra Gascón. O primeiro é a avaliação interna de um comitê. No caso de rejeitar a denúncia ou de considerar a infração como mais leve, o comitê pode nem mesmo emitir uma nota pública. O segundo é a abertura de um procedimento interno com nota pública de avaliação.
Dalenogare não acredita na desclassificação de Emilia Pérez, como muitos defendem nas redes sociais. “Não apostaria”, diz o especialista. Para ele, a Academia deveria fazer ao menos uma menção ao caso para que fatos como esse não se repitam.
A grande questão é o que levou Gascón a cometer esse tipo de atitude na reta final da campanha para o Oscar - os votantes, cerca de 10 mil, devem enviar suas escolhas entre os dias 11 e 18 de fevereiro.

“Em vez da Netflix fazer uma campanha de celebração de Emilia Pérez, acabou optando por colocar Gascón na linha de frente para proclamar que qualquer menção negativa ao filme era patrocinada por grupos organizados e tóxicos”, aponta Dalenogare. A Netflix é a distribuidora do longa nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, a função ficou com a Paris Filmes.
Para o crítico, a atriz deveria comemorar as indicações históricas de Emilia Pérez, mas preferiu sugerir aos poucos que as críticas ao filme poderiam ser articuladas por brasileiros. “Fica a pergunta: ela acreditava em tudo o que falava na campanha ou seguia um discurso pronto por uma equipe de marketing?”.
O Estadão procurou a assessoria de imprensa da Netflix para comentar a afirmação de Dalenogare, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto.
Equipe de ‘Emília Perez’ derrubou as peças do tabuleiro
O crítico de cinema Sérgio Rizzo compara as declarações de Gascón ao lançamento de uma granada. “É como se o filme começasse a ganhar um pouco mais de atenção do que ele desejaria ter ganhado. Ele tinha uma curva de circulação na mídia que, até certo ponto, era favorável. Mas, quando começa a receber ataques variados, é como se o parafuso espanasse”, avalia.
Rizzo diz que não é possível estimar com precisão a participação da Netflix em todo esse processo. “É um player importante, que nunca ganhou um Oscar, se movimentando nos bastidores”, avalia o crítico. Ele ressalta que a Sony, produtora de Ainda Estou Aqui, faz o mesmo. “Certamente a Fernanda Torres já tem muito mais tempo de campanha do que de set para rodar o filme”, diz.
A diferença é maneira como ambas conduzem as campanhas. Uma hipótese, para Rizzo, é alguma pesquisa ter apontado para os produtores de Emilia Pérez que o jogo precisasse de uma grande mexida. Um contragolpe do filme às pancadas que vinha recebendo. Sobrou para Gascón o papel de derrubar as peças. “Uma estratégia muito infeliz”, em sua avaliação.
Para Rizzo, Emilia Pérez é vítima do próprio sucesso. “É um filme incomum, ninguém pode negar, e nem precisa gostar dele, pois, para uma parte do público, ele é muito difícil, antipático. Saiu para arena e foi malhado”.
Na campanha para o Oscar, que envolve grandes cifras e, sobretudo, egos, qualquer um pode ser devorado. Um vídeo de Fernanda Torres com maquiagem para interpretar uma personagem negra, em esquete do Fantástico exibida em 2008, viralizou nas redes. A prática é conhecida como blackface.
A atriz brasileira pediu desculpas em um comunicado publicado no site americano Deadline, um dos veículos mais respeitados no meio cinematográfico internacional. “Eu sinto muito por isso. Estou fazendo este comunicado pois creio ser importante tocar nesse assunto e evitar mais dor ou confusão”.
O passado também vem assombrando Karla Sofía Gascón. Ela foi acusada de racismo e intolerância religiosa por conta de publicações que fez no Twitter (atual X). Em 2020, quando da morte George Floyd, homem negro que foi asfixiado por um policial branco em uma abordagem nos Estados Unidos, ela escreveu: “Eu realmente acredito que poucas pessoas se importaram com George Floyd, um viciado em drogas e um traficante, mas sua morte serviu para destacar mais uma vez que há aqueles que ainda considerem os negros como macacos sem direitos e aqueles que consideram que policiais sejam assassinos. Tudo errado”.
A morte de Floyd impulsionou o movimento Black Lives Matter, que, posteriormente, deflagrou outros movimentos em defesa de direitos sociais, inclusive de pautas da comunidade LGBTQIA+.
Gascón também usou o termo “retardados do Irã” ao se referir ao ataque terrorista que aconteceu em Nice, na França, no qual três pessoas foram esfaqueadas e uma foi decapitada, em 2020. “Quantas vezes teremos que expulsar esses energúmenos da Europa até nos darmos conta de que sua religião é incompatível com os valores ocidentais?”, escreveu, na época, a atriz.
A atriz já atacou até mesmo o Oscar, em 2021. “Cada vez mais o Oscar parece uma cerimônia para filmes independentes e de protesto. Não sabia se estava assistindo a um festival afro-coreano, uma manifestação do Black Lives Matter ou do 8M [movimento pela luta das mulheres].” Naquele ano, a premiação havia entregado troféus de coadjuvantes a Daniel Kaluuya (Judas e o Messias Negro) e à atriz sul-coreana Youn Yuh-jung (Minari).
A maioria das postagens foi apagada depois de descobertas e divulgadas por usuários do X e pela mídia. Nesta sexta-feira, 31, Karla desativou sua conta no X. Depois, ela se manifestou, se desculpou e disse que havia “algo de muito sombrio por trás disso”.
Quem também se manifestou foi a atriz Zoë Saldaña, que contracena com Karla Sofía Gascón no filme. Também nesta sexta, ela disse que está “triste” com os tuítes ofensivos da colega que foram resgatados nas redes sociais. “Ainda estou processando tudo o que aconteceu nos últimos dias, e eu estou triste”, disse a atriz durante uma sessão de perguntas e respostas em Londres.
Ela seguiu: “Não apoio [isso], e eu não tenho tolerância para qualquer retórica negativa direcionada a pessoas de qualquer grupo. Eu só posso atestar pela experiência que tive com cada indivíduo que fez parte, que faz parte, deste filme, e minha experiência e minhas interações com eles foram sobre inclusão, colaboração e equidade racial, cultural e de gênero. E isso apenas me entristece.”
Para a imprensa internacional especializada, esta fala poderia ser interpretada já como um contenção de dados.
Como fica a corrida pelo Oscar daqui para frente
Diante de tudo isso, uma questão se impõe: o inicial favoritismo de Emilia Pérez na premiação do Oscar 2025 está comprometido depois de todos esses fatos envolvendo sua estrela principal?
Para a jornalista e crítica de cinema Barbara Demerov, sim. Em sua avaliação, a maré não está nada boa para o filme, ao menos neste momento - e tudo pode mudar nos próximos dias.
“Existem algumas chances de Emilia Pérez até sair do Oscar de mãos vazias (Zoë Saldaña, indicada como atriz coadjuvante, é quem tem mais chances de levar um prêmio pelo filme neste momento). Na categoria de Filme Internacional, por exemplo, Ainda Estou Aqui e A Semente do Fruto Sagrado são filmes mais políticos e, por consequência, podem agradar mais a Academia por não estarem envolvidos em polêmicas”, afirma.
Barbara compara as posturas de Gascón e Torres na campanha. Para ela, a brasileira está focada em promover Ainda Estou Aqui, comprometida em honrar o nome de Eunice Paiva e foi correta ao fazer o vídeo em que pede que brasileiros respeitem sua adversária. “Um vídeo com um bom timing, inclusive”, avalia.

“Já Karla tem uma postura mais incisiva nas redes sociais (ou pelo menos tinha, pois apagou sua conta no X). Essa atitude, aliada ao resgate de suas declarações mais antigas, estão colocando um foco negativo justamente em sua presença e também no filme que protagoniza, num momento em que ele precisava de força para cruzar ileso a reta final”, completa Barbara.
Ela afirma que esse vale-tudo é normal no período de campanha e os ataques chegam de todos os lados. Ela relembra que isso nem sempre, porém, compromete o resultado final. Foi o caso de Quem Quer Ser um Milionário?, de Danny Boyle, em 2009. Boyle foi acusado pela mídia americana de remunerar mal as estrelas infantis no elenco. O filme, no entanto, ganhou oito estatuetas - inclusive a de melhor filme.
Tanto Barbara Demerov quanto Sergio Rizzo não veem Gascón com possibilidades de ganhar o Oscar na categoria de melhor atriz. “Desde antes das polêmicas envolvendo Gascón, eu sempre vi o embate final entre Demi Moore e Fernanda Torres. As duas saíram como vencedoras do Globo de Ouro — Demi deu um discurso poderoso e Fernanda surpreendeu a todos na indústria”, diz Barbara.
Leia também
“Gascón nunca teve a menor chance de ganhar”, afirma, categoricamente, Rizzo. Para ele, a estratégia de ataque na campanha feita por Emilia Pérez tem como foco o prêmio de Melhor Filme Internacional. “Perceberam que Ainda Estou Aqui cresceu muito. Se atacam a Fernanda Torres, atacam o filme”.
Rizzo tem uma tese: os filmes pioram quando você ouve as pessoas que os fazem. “Não conheço nenhum exemplo ao contrário”, diz. “É o caso de Emilia Pérez. Continuo a gostar dele. Deixe o filme falar por si”, avalia o crítico, que escreveu sobre o filme para o Estadão, ao apontar o antídoto para já um possível gosto amargo em caso da provável vitória de Emilia Pérez em algumas das categorias aos quais foi indicado.