Por dentro da batalha para lançar ‘O Aprendiz’, o polêmico filme sobre Trump

Até agora, o docudrama sobre os anos de Trump como magnata do setor imobiliário de Nova York, que fez sua estreia no Festival de Cinema de Cannes, não conseguiu uma distribuidora americana

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Por Jada Yuan

As polêmicas foram quase constantes na vida de Daniel Snyder ao longo dos 24 anos em que ele foi proprietário do Washington Commanders, da NFL. Agora, um ano depois de ter vendido sua participação no time de futebol americano, Snyder entrou em outro tipo de disputa: a Kinematics, produtora cinematográfica financiada em grande parte por ele, está tentando barrar o lançamento nos Estados Unidos de um filme sobre Donald Trump, segundo cinco pessoas familiarizadas com a produção.

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O Aprendiz, um docudrama sobre os anos de Trump como magnata do setor imobiliário de Nova York, fez sua estreia no Festival de Cinema de Cannes, em maio. A BBC avaliou que Sebastian Stan, que interpreta um jovem Trump, está “excelente”. Já a Rolling Stone disse que se trata “do filme biográfico de Donald Trump mais brutal que se possa imaginar”.

O filme, que é uma espécie de história de origem de Trump, se concentra em seu relacionamento quase filial com o notório contraventor Roy Cohn (Jeremy Strong), que, de acordo com o longa, ensinou a Trump cartilha política que ele usa até hoje.

Jeremy Strong como Roy Cohn e Sebastian Stan como Donald Trump em uma cena de 'O Aprendiz', que estreou no Festival de Cinema de Cannes Foto: Mongrel Media/Cannes Film Festival

Mas, até agora, o filme - que traz uma acusação de estupro feita por Ivana Trump que ela depois veio a desmentir - não conseguiu uma distribuidora americana. Até mesmo o épico excêntrico de Francis Ford Coppola, Megalopolis, que também estreou em Cannes e é considerado difícil de vender para o público geral, conseguiu distribuição no país. A demora é notável porque, a julgar pelo êxtase da estreia e pela intensa cobertura da mídia, o interesse em O Aprendiz é grande - e seu lançamento em ano de eleições seria crucial para o sucesso nas bilheterias.

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Snyder e a Kinematics não quiseram fazer comentários para este artigo.

Para complicar a situação, existe a possibilidade de um processo por difamação por parte de Trump, que fez essa ameaça logo após a estreia do filme. Vários estúdios importantes já se recusaram a distribuir O Aprendiz.

Agora o filme finalmente conseguiu uma parceira interessada nos Estados Unidos: a Briarcliff, distribuidora independente cujo fundador, Tom Ortenberg, tem um histórico de trabalhar com filmes polêmicos, como Fahrenheit 11/9, de Michael Moore, e o vencedor do Oscar Spotlight - Segredos Revelados.

Mas o acordo está parado, dizem as cinco pessoas próximas à produção, que falaram sob condição de anonimato devido à natureza sensível das negociações, porque Snyder, sócio majoritário da produtora Kinematics, não gostou do filme.

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“A lição é a seguinte: se você for criticar uma pessoa poderosa, é melhor ter outra pessoa poderosa que o proteja”, disse ao Washington Post o diretor Ali Abbasi, que não pôde falar sobre detalhes das negociações por motivos legais.

De acordo com uma pessoa próxima à Kinematics, que também falou sob condição de anonimato, essas alegações não são verdadeiras. Segundo essa pessoa, Snyder não tem poder de ingerência sobre a produção ou o lançamento do filme. Não se trata de tentar abafar um filme que critica Trump, acrescenta a pessoa, mas sim de uma história mais mundana de Hollywood: uma produtora que simplesmente tem objetivos financeiros diferentes dos de seus parceiros produtores - além de uma discordância estridente sobre a inclusão da cena de estupro - e está usando seu poder para negociar um acordo melhor.

Uma pessoa próxima a Snyder, que falou sob condição de anonimato para dar uma ideia mais clara sobre a posição dele, acrescentou que Snyder não tem nada a ver com o filme.

A equipe de O Aprendiz agora está dividida. De um lado estão Snyder e a Kinematics. Do outro, os criativos: Abbasi, o roteirista Gabriel Sherman, os produtores e a equipe, alguns dos quais estão trabalhando no filme desde 2017.

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No entanto, o Post soube que, nos últimos dias, a Kinematics voltou à mesa de negociações e quer vender sua parte no projeto, de acordo com duas pessoas familiarizadas com as conversas. A pessoa próxima à Kinematics diz que, se a empresa se afastar, será com relutância.

A Kinematics, que até agora trabalhou apenas com uns poucos projetos pequenos, é dirigida por Mark H. Rapaport, casado com Tiffanie, filha de Snyder. A empresa arcou com aproximadamente metade do orçamento de US$ 16 milhões de O Aprendiz e, como principal financiadora nos Estados Unidos, tem poder de veto sobre o acordo de distribuição no país. O maior investidor do filme nos Estados Unidos é, basicamente, Snyder.

Snyder não é oficialmente um dos produtores de O Aprendiz. Seu nome não aparece em nenhum lugar entre os 45 produtores listados nos créditos finais. Os membros da equipe de criação dizem que nunca interagiram pessoalmente com ele.

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E, no entanto, de acordo com uma pessoa próxima à produção que falou sob condição de anonimato porque as negociações estão em andamento, Ari Emanuel, chefe da agência WME, que representa Strong, entrou em contato diretamente com Snyder para pedir que ele aprovasse o acordo com a Briarcliff. (Strong foi muito elogiado em Cannes como um possível candidato ao Oscar). Emanuel não respondeu a um pedido de comentário.

A Kinematics foi acusada de protelar em todas as frentes. Até agora, os esforços dos outros produtores para tirar a Kinematics do negócio não tiveram sucesso, e pessoas próximas à produção acreditam que Snyder tem a palavra final e está segurando o acordo, “que tem todos os ingredientes de uma ‘operação abafa’”, disse uma das pessoas próximas à produção, referindo-se à prática dos tabloides de comprar uma história para impedir sua divulgação.

Snyder doou US$ 1,1 milhão para o comitê presidencial de Trump e para o Victory Fund em 2016, bem como US$ 100 mil para sua campanha de reeleição em 2020.

Abbasi se reuniu pela primeira vez com Rapaport a bordo do iate de Snyder durante o Festival de Cinema de Cannes de 2023. De início, os financiadores e os criativos concordaram que valia a pena apressar a finalização do filme para submetê-lo ao Festival de Cannes de 2024 - onde o longa ganhou uma prestigiosa vaga na competição - porque isso o prepararia melhor para a venda nos Estados Unidos e para um lançamento antes da eleição presidencial de novembro. De acordo com uma pessoa próxima à produção, Rapaport assegurou a Snyder que o filme seria “bem isento” e justo. Várias pessoas próximas à produção dizem que, depois que Snyder viu um corte, a Kinematics começou a antagonizar com seus parceiros de produção.

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O momento mais chocante do filme ocorre quando Trump aparece estuprando sua primeira esposa, Ivana, interpretada por Maria Bakalova, durante uma discussão. De acordo com o livro Lost Tycoon [Magnata Perdido, em tradução direta], de 1993, Ivana fez a acusação de estupro sob juramento, durante um depoimento de divórcio em 1990, mas depois esclareceu sua declaração, observando que ela não quisera dizer aquelas palavras no “sentido literal ou criminoso”. Ivana morreu em 2022.

A pessoa próxima à Kinematics diz que Snyder viu de 20 a 30 minutos de um corte bruto do filme em março e que ele “não gostou”, mas que não fez nenhuma sugestão criativa. Pessoas próximas à produção dizem que isso dá uma imagem imprecisa da influência de Snyder e que o ponto de vista de Snyder foi comunicado por meio da Kinematics em muitas ocasiões.

O bilionário ficou “furioso” com o que considerou ser um retrato negativo de Trump, informou a Variety.

Esse sentimento foi confirmado por uma pessoa próxima à produção, que disse ao Post: “Ele se irritou e entrou em guerra contra nós”.

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Outros conflitos entre os financiadores e os criativos surgiram pouco antes da estreia em Cannes, quando a Kinematics enviou uma carta aos outros produtores exigindo que a cena do estupro fosse removida ou atenuada e mencionando outras preocupações levantadas por seus advogados, com base em seus direitos de aprovação mútua sobre o corte final. Eles foram pegos de surpresa, porque a cena não estava no roteiro aprovado, então ficaram com medo das possíveis consequências legais e preocupados com a possibilidade de Trump entrar com um processo de difamação contra eles, diz a pessoa familiarizada com as conversas internas da Kinematics.

As pessoas envolvidas na produção dizem que a cena não foi de forma alguma uma surpresa: estava no roteiro que a Kinematics aprovou antes da produção e, acrescentam elas, a versão da cena exibida em Cannes é, na verdade, menos violenta do que a descrita no roteiro aprovado.

Todas as outras alterações solicitadas foram cumpridas, mas os criativos foram inflexíveis quanto à permanência da cena do estupro, de acordo com pessoas de ambos os lados.

“É um ponto de virada muito importante na história”, diz Abbasi.

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Logo depois da estreia em Cannes vieram os acordos de distribuição na Europa e outra carta legal - dessa vez uma ordem de cessação dos advogados de Trump. A carta, que foi analisada pelo Post, acusava os cineastas de “interferência estrangeira direta na eleição dos Estados Unidos” porque Abbasi é iraniano radicado na Dinamarca e o filme tinha fontes de financiamento no exterior. A carta também acusava Sherman, repórter que escreveu extensivamente sobre Trump para a Vanity Fair, de ter a “Síndrome de Loucura Anti-Trump”.

Mas a distribuição nos Estados Unidos tem sido difícil, apesar dos esforços fervorosos da WME e da Creative Artists Agency para encontrar uma parceria. Ninguém em Hollywood parece ter estômago para correr o risco de cair na ira do possível futuro presidente americano, informou Matthew Belloni, do Puck News.

“Normalmente, quando você tem o tipo de recepção que tivemos, há uma guerra de propostas”, diz Abbasi, cujo último filme em Cannes, Holy Spider, sobre um assassino em série na cidade sagrada de Mashhad, foi vendido em dois dias, mesmo que o diretor tenha sido condenado pelo governo iraniano por fazer um filme “insultante e com motivações políticas”. Dessa vez, diz ele, o longa está recebendo inúmeros elogios pela atuação de Strong e despertou o interesse de possíveis compradores, que trouxeram equipes de 15 pessoas cheias de advogados, mas, ainda assim, não conseguiu fechar negócio com ninguém.

“Parece que ou [os distribuidores] estão preocupados com o risco de Trump mandar o Departamento de Justiça ou o Departamento de Comércio atrás deles e usar a força do governo contra eles”, diz Abbasi, “ou estão preocupados com a nação MAGA e com a possibilidade de 80 milhões de pessoas que votam nele ficarem com raiva de seu serviço de streaming”.

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Apple, Amazon e Netflix não se interessaram. A Disney está saindo de uma longa batalha contra o governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis. A Sony se envolveu com política e perdeu depois que A Entrevista, comédia de Seth Rogen sobre o líder norte-coreano Kim Jong Un, causou um prejuízo debilitante ao estúdio.

A Briarcliff foi a única distribuidora independente a fazer uma oferta viável. Mas, de acordo com a pessoa familiarizada com as conversas na Kinematics, os financiadores acham que a proposta - um pequeno adiantamento para lançar o filme em troca de uma porcentagem da receita de bilheteria - não é boa o bastante para garantir lucro. E se eles puderem esperar por uma oferta melhor com uma data de lançamento posterior, eles vão esperar.

De acordo com a mesma pessoa, a oferta dos outros produtores para comprar a parte da Kinematics no negócio não é substancial o suficiente para compensar seu investimento de tempo e dinheiro. Mas uma pessoa do outro lado argumenta que a proposta cobre os US$ 5 milhões que a empresa ainda tem no filme, além de oferecer um prêmio de US$ 2 milhões pelo retorno do investimento da Kinematics.

“O filme não está sendo barrado pela Kinematics. Está sendo barrado pelas contas financeiras”, diz a pessoa próxima à Kinematics. “Está sendo barrado pelo medo de Hollywood de irritar Trump”. Se houvesse mais ofertas, o filme já teria um acordo, acrescenta a mesma pessoa.

Quem perde com toda essa briga, diz Abbasi, é o público americano, a quem está sendo negada a chance de ver o filme. “Por que não temos nem mesmo a chance de apresentar o filme ao público para que as pessoas possam decidir?” / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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