Neo, o herói de Matrix, tem certeza de que vive em 1999. Ele tem uma impressora matricial e um monitor de tubo em tons de verde. Sua cidade tem cabines telefônicas que funcionam.
Mas ele está enganado: Neo vive no futuro (2199, mais precisamente). O mundo dele é uma simulação – uma versão falseada do final do século 20, criada por inteligências artificiais do século 21 para escravizar a humanidade.
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Acontece que, quando vimos Neo pela primeira vez, estávamos de fato em 1999. A ideia de a IA se alimentar de cérebros e corpos humanos parecia um experimento mental. Mas as advertências do filme sobre IA – e todo o resto – foram ficando mais claras com o tempo, o que explica por que o longa foi reivindicado por todo tipo de gente nos anos seguintes: filósofos, pastores, defensores da tecnologia, detratores da tecnologia, a alt-right. A julgar apenas pela relevância cultural, Matrix talvez seja o lançamento mais importante de 1999.
A genialidade do filme – o que faz com que continue sendo tão incrivelmente assistível mesmo depois de 25 anos – é que as diretoras Lilly e Lana Wachowski não tentaram controlar o significado. Em vez disso, elas semearam simbolismo por toda parte.
Vejamos como uma cena introdutória consegue reunir vários tópicos temáticos, explicando por que, no nosso mundo de internet onipresente, IA, fake news e extremismo, Matrix parece mais relevante do que nunca.
Neo é instruído por uma presença sombria, aparentemente no seu computador, a “seguir o coelho branco”. É uma referência ao livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, uma das alusões literárias estruturantes do filme.
Um capítulo intitulado Pela toca do coelho criou a expressão que agora é usada para descrever aquele momento em que ficamos tão obcecados com algo que começamos a perder o senso de realidade. Graças à internet, todos nós sabemos o que é isso. Uma toca de coelho específica para a qual Matrix levou muita gente foi uma investigação filosófica conhecida como “hipótese da simulação”, que questiona se estamos realmente vivendo dentro de uma simulação. Em caso afirmativo, o que isso significa para nossas vidas? O documentário A Glitch in the Matrix (2021) conta a história de um homem que passou a acreditar que o filme retratava a realidade literalmente, o que o levou a cometer um assassinato.
Mas, mesmo que você não esteja vivendo dentro de uma simulação, sua realidade talvez esteja começando a parecer irreal. Um tema de Matrix profundamente codificado pela Geração X tem a ver com reconhecer e evitar corporações sem alma e sistemas sem cérebro. O trabalho de Neo numa fazenda de cubículos ecoa visualmente a fazenda humana da qual – como ele acaba descobrindo – as IAs se alimentam. (Matrix foi lançado um mês depois do lançamento de Office Space: Como Enlouquecer seu Chefe, que satiriza o mal-estar corporativo)
Agora, 25 anos depois, a máxima da Geração X contra vender a própria alma se transformou no discurso com o qual os influenciadores ficam exortando você a ser seu próprio chefe, numa época em que ganhar a vida está mais difícil do que nunca. Isso é assustador para as pessoas cujos empregos podem ser substituídos pela IA, que é treinada com produtos da criatividade humana – muitas vezes sem o consentimento dos criadores. As fazendas humanas de Matrix se revelaram assustadoramente proféticas.
Realidade distorcida
E ainda tem mais Alice. Carroll criou um mundo fictício no qual cada personagem e cada cenário espelhava algo da realidade da era vitoriana. No final, o País das Maravilhas é absurdo. Mas a realidade onde Alice vive, com seus líderes imperiosos e sistemas confusos, também é.
Este é o rumo que Matrix segue a partir desse momento. Tudo o que achamos que sabemos sobre o mundo ao nosso redor está, na verdade, nos cegando para a realidade mais verdadeira e profunda.
À noite, Neo é um hacker que vende minidiscos contrabandeados de seu apartamento – e tem entre seus clientes um bando de cyberpunks. Ele guarda seus discos e seus lucros dentro de uma cópia oca de Simulacros e Simulação (1981), tratado do filósofo Jean Baudrillard, um texto fundamental para Matrix. Muito se falou a respeito das ligações entre o filme e as ideias de Baudrillard sobre como as simulações e a hiper-realidade colonizam “o real” na era pós-moderna, a ponto de nada mais ser real.
Na verdade, Baudrillard não gostou de Matrix. Ele achou que o filme deturpava suas ideias sobre a simulação sobrepujar a realidade, achatando e distorcendo o argumento.
Mas vamos continuar descendo pela toca do coelho: Simulacros e Simulação se abre com o ensaio Sobre o niilismo. Nele, Baudrillard sugere que não adianta apontar “a verdade” de dentro de um sistema que nega ou suprime a realidade. Nessas circunstâncias, a única ferramenta para combater a opressão é a violência. Só se pode combater o niilismo com niilismo. É nesse ponto que as irmãs Wachowski discordam.
Com base em todos os quatro filmes da saga Matrix – inclusive o último, uma arrebatadora história de amor – sua maior indagação é sobre niilismo versus humanismo. Tudo gira em torno de como vivemos dentro de sistemas que tentam negar e suprimir quem somos. E a resposta delas, em última análise, é o amor.
Desde então, ambas as Wachowski se assumiram como mulheres trans. Um subconjunto significativo de fãs agora vê Matrix como uma metáfora para a experiência de pessoas trans, uma interpretação que o próprio filme reforça com declarações sobre a existência de Neo dentro de um sistema literalmente binário. Em 2016, Lilly Wachowski disse que “embora as ideias de identidade e transformação sejam componentes essenciais de nosso trabalho, o alicerce que sustenta todas as ideias é o amor”.
Alegoria religiosa
O cliente de Neo também brinca dizendo que ele é seu “Jesus Cristo particular”, um momento que estabelece as muitas alusões bíblicas no filme: a cidade de Zion (ou seja, Sião, nome bíblico para Jerusalém, bem como a ideia da cidade de Deus), a traição de Cypher, que se assemelha à de Judas, e uma personagem muito importante chamada Trinity (ou seja, “trindade”). Naquela época, líderes de grupos de jovens usaram esses sinais para deixar sua religião mais bacana.
E a ideia de Matrix como alegoria religiosa pegou mesmo. Nos últimos 25 anos, foram publicados livros com títulos como Escaping the Matrix: Setting Your Mind Free to Experience Real Life in Christ [algo como Escapando da Matrix: Libertando a mente para viver a verdadeira vida em Cristo, The Gospel Reloaded e Christ - The Original Matrix. Se você estiver procurando um sentido, com certeza vai encontrar.
Mas ainda há outros temas. Um instante antes de conhecermos Neo, vemos a tela de seu computador, na qual as manchetes das notícias ficam carregando e rolando sozinhas, sem ninguém tocar no teclado.
Verdades oficiais, teoria da conspiração e fake news
Em 1999, o termo fake news não era muito difundido, nem tinha o mesmo tipo de significado. Mas a questão das verdades “oficiais” e de quem as controla passou a permear a cultura pop da época. Quando Matrix estreou, Arquivo X estava no auge da popularidade. Em 1999, a internet aberta ainda prometia promover mais verdade, não menos. Como aprendemos desde então, a internet pode espalhar verdades, mas também teorias da conspiração e mentiras absolutas.
E, quando a mesa de Neo aparece de relance, vemos outra alusão fenomenológica com implicações até os dias de hoje. A palavra “caverna” vem à mente. (A noção filosófica da caverna de Platão paira densamente sobre esse filme). A mesa está repleta de computadores e aparelhos tecnológicos: monitores, um teclado ergonômico, aquela impressora. Há também um Apple Newton, uma espécie de tablet com reconhecimento de escrita manual que foi o predecessor de nossos iPads e iPhones.
Neo está sempre conectado à internet. Em 1999, a maioria de nós ainda pensava na internet como um lugar que você visitava, e não como uma entidade nebulosa e pegajosa de onde nunca saímos. Matrix nos deu um herói que sabia o que era estar sempre conectado e conhecia muito bem a sensação de irrealidade que pode vir com uma vida vivida no espaço virtual.
Ainda demora um pouco para conhecermos Morpheus e descobrirmos todas as verdades sobre a Matrix, as máquinas e o papel de Neo em tudo isso. Esse momento chega com uma imagem que ficou tão famosa que virou meme: duas pílulas refletidas nos óculos de Morpheus, uma vermelha e outra azul. A ideia de ser “redpillado” – ou seja, escolher encarar a realidade em vez de sucumbir à tentação da simulação confortável – virou meme nas plataformas de redes sociais, geralmente associado a causas de direita que têm uma forte presença online, como ativistas dos direitos dos homens, teóricos da conspiração e a alt-right.
Mas, na verdade, não passa de rejeitar uma narrativa para adotar outra. A pessoa que escolhe a pílula vermelha está só aceitando uma nova Matrix.
Todas essas metáforas estão no filme – e aquelas que você consegue ver dependem, ironicamente, de qual sistema você mais quer desmantelar. Vinte e cinco anos depois, as metáforas sobre o capitalismo, os gêneros binários, as gaiolas tecnológicas e a inteligência artificial ficaram mais relevantes, e não menos.
O fato de Matrix continuar nos abrindo novas maneiras de interpretá-lo só nos faz lembrar de como o filme foi inovador. Mas também é um vislumbre de como a grande arte nunca tem um significado fixo e, por isso, é sempre um pouco perigosa.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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