Na nova adaptação da Netflix de Ma Rainey’s Black Botton, é um dia de verão muito quente em Chicago em 1927, todo mundo desejando alguma coisa. Os chefões da indústria fonográfica branca querem um novo disco da indomável Ma Rainey (Viola Davis) cantora sulista apelidada de a Mãe do Blues, e querem rápido. O ambicioso trompetista deseja inserir um toque contemporâneo nas músicas no velho estilo interpretadas por Ma Rainey, esperando com isto deslanchar sua própria carreira.
E o que deseja ela, depois de chegar atrasada para a sessão de gravação, causar uma comoção nas ruas e fazer uma avaliação do pessoal da música que agora parece um enxame de moscas em volta dela?
Adaptado da peça de August Wilson, de 1984, pelo diretor George Wolfe e o roteirista Ruben Santiago-Hudson, o filme estreará na Netflix em 18 de dezembro, mas muita coisa mudou desde que ele foi concluído no ano passado. Em agosto, Chadwick Boseman morreu, aos 43 anos, depois de uma batalha contra um câncer do cólon. Leeve é o seu personagem final.
“Ele fez um trabalho brilhante e partiu”, disse Denzel Washington, produtor do filme. “Ainda não consigo acreditar”.
Além disto, depois de um verão de acertos de contas raciais no país, a história trágica de Wilson sobre afro-americanos tendo de conviver com um sistema manipulado se tornou ainda mais relevante. “Como você pode avançar quando continua perseguido pelo passado?”, pergunta Wolfe.
Ma Rainey’s Black Bottom é a segunda adaptação para o cinema de uma peça de Wilson, desde 2015. A primeira, Fences (Um limite entre nós) foi dirigida por Denzel Washington e propiciou a Viola Davis um Oscar de atriz coadjuvante. Denzel espera reunir seu filho John David Barrymore, Samuel L. Jackson e o diretor Barry Jenkins para uma adaptação da peça de Wilson, de 1987, chamada The Piano Lesson.
“A parte mais importante do que resta da minha carreira é garantir que August Wilson seja reconhecido como deve” disse Denzel.
Mas quando ele e Wolfe contataram Viola Davis para interpretar Ma Rainey, a atriz vacilou. Embora tivesse sido contemplada com o prêmio Tony duas vezes, pela sua atuação no drama de Wilson, King Hedley II, e pelo seu papel em Fences, no teatro em 2010, ela jamais havia interpretado uma diva como a cantora Ma Rainey e se perguntou se conseguiria.
“Pensei em outras 50 atrizes antes de mim para o papel”, disse Viola. “Ma Rainey não era apologética e isso se refletia no seu corpo e a maneira como se vestia. E veja, como Viola, em minha vida, não sou assim”.
Mas quando se decidiu a fazer o papel e deixou de lado todas as suas inibições, interpretar Ma Rainey foi “fantástico”, afirmou. “Eu adorei encarná-la. Balançava meus quadris diariamente. Havia uma imensa alegria nessa liberdade de expressão”. E a autoconfiança da sua personagem também proporcionou a Viola uma outra lição valiosa. “Tenho de lembrar que não devo regatear o meu valor”.
Toda a produção foi arquitetada em torno do cronograma apertado de Viola Davis; a gravação foi feita em Pittsburgh no ano passado durante uma pausa da sua série na ABC, How to Get Away With Murder, e todas as cenas com a atriz foram filmadas primeiro para ela retornar à produção da temporada final daquela série. Embora Boseman estivesse no auge da fama, aparecendo em três filmes sucessos de bilheteria, Pantera Negra, Vingadores, Guerra Infinita, e Vingadores, Ultimato, Davis descreveu seu colega no filme como um supremo colaborador.
“Muitos atores confundem as coisas. Um ator do status de Chadwick normalmente chega ao set de filmagem e o que prevalece é o seu ego: é isto que eles querem, ou o que não irão fazer. Isto não aconteceu de modo nenhum com Chadwick. Ele rejeitou qualquer ego que tivesse, qualquer tipo de vaidade e entrou na pele de Levee”
O papel será uma revelação para os fãs que conhecem Chadwick Boseman apenas como o super-herói TChalla. Ele insere uma fisicalidade eletrizante no seu personagem, seja lutando com um passado repleto de traumas, seduzindo a namorada de Ma, Dussie Mae (Taylor Page) ou mostrando sua agressividade em alguns diálogos que culminam com Leeve enfurecido com Deus. Impregnado do carisma do astro e praticamente garantindo um reconhecimento do Oscar, este é o mais belo desempenho de Boseman na tela.
Viola Davis disse que não tinha ideia do que Boseman vinha enfrentando enquanto rodavam o filme. “Lembro de como ele parecia sempre cansado. E a incrível equipe que pensava nele, o massageava, e agora me dou conta de tudo o que estavam tentando fazer para incentivá-lo a continuar e atuar no seu nível de excelência. E ele correspondeu”, disse ela.
Embora as ambições frustradas de Levee provavelmente assumirão uma grandiosidade mais trágica após a morte de Boseman, Davis incentiva os fãs do ator a se concentrarem mais nas verdades culturais que o ator queria transmitir.
“Penso muitas vezes que as pessoas olham muito para a vida pregressa de alguém”, afirmou. “Agora temos o infeliz conhecimento de que Chadwick sucumbiu a um câncer aos 43 anos, mas, realmente, Levee representa tantos homens negros que vivem na América. O que estamos enfrentando constantemente todos os dias é o trauma do nosso passado; desejando curar isto, tentando compreender que ele está ai e estamos barganhando isto com nossos sonhos e quem desejamos nos tornar”.
Para Viola Davis, é isto que é importante na obra de Wilson, em que pessoas negras comuns finalmente se permitem uma escada e uma especificidade para se tornarem uma espécie de heróis trágicos que por muito tempo eram representados no teatro por atores brancos.
“Agora sabemos que o papel espelha a vida de Chadwick, mas se isso for omitido, ainda assim espelha a sua vida, de uma certa maneira, porque espelha a vida de cada pessoa negra que sofre, e especialmente a vida de um homem negro”.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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