Qual é o futuro das salas de cinema do Brasil – e por que a resposta é ainda mais complexa?

Mesmo com o fim da pandemia e das greves, as salas de cinema no Brasil ainda não alcançaram o público dos tempos de outrora — uma realidade compartilhada por outros mercados. Especialistas e frequentadores apontam os principais desafios e discutem possíveis soluções para reverter esse cenário

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Foto do author Flávio Pinto
Atualização:

Rita Lee sempre dizia que, no escurinho do cinema, o público se afasta dos problemas e se aproxima de um final feliz. Se essa visão estiver correta, hoje há pelo menos 32% menos brasileiros participando dessa experiência.

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Segundo o relatório mais recente do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), o público nas salas de cinema em 2024 foi de 121 milhões de pagantes, o que representa apenas 68% do total registrado em 2019, quando 177,7 milhões de ingressos foram vendidos. O cenário atual, após a pandemia de Covid-19 e as greves de Hollywood em 2023, é visto como uma nova tentativa de recuperação do cinema no Brasil.

“A pandemia fechou estúdios e cinemas, interrompendo a produção e a distribuição de filmes. Como a produção de um filme pode levar anos, essa pausa impactou a quantidade e a frequência dos lançamentos”, lembra Marcelo J. L. Lima, CEO da Tonks, responsável pela sala Cine Marquise e pela revista Exibidor. “Quando os estúdios retomaram a produção, o processo foi ainda mais afetado pela greve que paralisou a indústria. O resultado foi uma escassez de filmes.”

Venda de ingresssos nos cinemas brasileiros ainda não voltou aos patamares pré-pandemia Foto: Felipe Rau/Estadão

No Brasil, houve uma vantagem nos últimos meses. Filmes nacionais como Os Farofeiros, Férias Trocadas, Nosso Lar e Ainda Estou Aqui conseguiram bons resultados econômicos, atenuando a dependência do cinema brasileiro em relação a Hollywood. “Mas o maior desafio não é o desinteresse das pessoas em ir ao cinema, e sim a falta de filmes de qualidade”, acrescenta. “Quando há produtos de qualidade, o público comparece às salas de cinema”. Como exemplos, o analista de mercado lista produções como o próprio Ainda Estou Aqui, além de sucessos internacionais como Divertida Mente 2, Barbie, Oppenheimer, e Deadpool e Wolverine.

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Marcelo ressalta que, de forma gradual, o mercado cinematográfico ainda está em processo de recuperação. O impacto dessa retomada lenta torna-se evidente quando grandes produções como Furiosa: Uma Saga Mad Max, Coringa: Delírio a Dois e The Flash não alcançam o público esperado. Essa dificuldade não é exclusiva do Brasil. “Mercados que não dependem diretamente dos Estados Unidos, como França e Índia, também enfrentam desafios semelhantes”, ele explica.

É nesse cenário de transformação que o mercado se encontra, também influenciado por mudanças nos hábitos de consumo.

Cinema em casa

Novos comportamentos têm moldado a forma como as pessoas aproveitam seu tempo livre. Quando Guilherme Gaspar, editor de livros, consegue uma pausa em sua agenda lotada, ele dedica esse momento a assistir filmes – uma paixão que o acompanha desde a infância.

Para aprimorar sua experiência de assistir em casa, ele decidiu fazer alguns upgrades. “Reformei meu apartamento para melhorar a acústica, comprei caixas de som potentes e agora tenho uma TV grande o suficiente”, conta ele, explicando os motivos pelos quais deixou de frequentar os cinemas com a mesma assiduidade de antes. Embora ainda se considere um frequentador de salas acima da média, ele destaca que a praticidade de ter um equipamento de qualidade em casa facilita a escolha do que assistir.

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A experiência de se imergir em uma sala escura, no entanto, tem enfrentado desafios significativos. “Especialmente pela maneira como as redes sociais moldaram nossa relação com o mundo”, explica Isabel Wittmann, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). “Essa constante conexão dificulta a desconexão, algo essencial para vivenciar plenamente o ritual do cinema.”

Alguns espectadores hoje preferem assistir a filmes no conforto de casa (Imagem ilustrativa) Foto: Choi_ Nikolai/Adobe Stock

Nas redes sociais, é comum encontrar relatos que denunciam pessoas usando o celular durante o filme, o que mostra como muitos já não conseguem se desconectar, nem mesmo em um ambiente projetado para isso. No aspecto social, a dinâmica também mudou. “Hoje, os jovens têm acesso a diversas outras formas de sociabilização, muitas delas digitais, o que faz com que o cinema perca parte de seu papel como espaço de encontro e interação social”, acrescenta Isabel.

Preços altos

Por muito tempo, o cinema foi um dos principais meios de entretenimento acessíveis ao público; hoje, porém, ele divide espaço com uma ampla variedade de opções culturais. Mesmo assim, a jornalista e votante do Globo de Ouro, Bárbara Demerov, destaca o poder das salas de cinema e a oportunidade de viver uma experiência única, no escuro e nas cadeiras. “O cinema é sobre emoção, e essa emoção é intensificada quando vivida coletivamente, com respeito e silêncio”, afirma.

No entanto, ela aponta que o alto custo dos ingressos dificulta o acesso a essa vivência. “Uma sessão de cinema, com pipoca e combo, ultrapassa facilmente os R$ 100, especialmente aos finais de semana, quando os preços são mais elevados”, observa Bárbara, enfatizando a barreira financeira que muitos espectadores encontram.

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Segundo dados da Ancine, o preço médio do ingresso é atualmente de R$ 19,74, um aumento nominal em relação aos R$ 15,93 registrados em 2019. Mas quando considerada a inflação, o preço diminuiu: em valores corrigidos, o ingresso de 2019 custaria R$ 21,39.

Grande parte do problema está nos custos associados a uma ida ao cinema, o que tem levado alguns brasileiros, como o arquiteto Roderico Neto, a se afastarem das salas. “Não é só o preço do ingresso. Eu moro relativamente longe da minha sala favorita, o que já gera custos com transporte”, relata. “Além disso, quando vou ao shopping, acabo sentindo fome e compro algo para comer, como pipoca ou refrigerante”.

Por isso, o arquiteto tem preferido assistir aos filmes em casa. “Devido aos altos preços, muitas pessoas acabam se questionando se vale a pena investir tanto em uma única experiência. Especialmente quando o conteúdo pode ser acessado em casa por um custo muito mais baixo”, observa Mariana Veil, produtora e sócia da Black Pen Filmes. Embora o mercado de eletrônicos ofereça opções para simular uma sala de cinema em casa, muitos acreditam que nenhum equipamento de home theater consegue substituir a magia de uma verdadeira sala de cinema.

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“O streaming, mesmo para quem paga por conteúdo em 4K, oferece uma qualidade de imagem inferior à das salas de cinema”, afirma o crítico de cinema Fillipe Furtado. “Quem ainda investe em mídia física e possui uma boa combinação de tela e som pode até alcançar algo semelhante, mas assistir a um filme em casa, por streaming, jamais proporciona a mesma imersão que uma sessão no cinema.”

Para Juliana Sakae, sócia da Muritiba Filmes, o aumento dos preços também está relacionado ao desaparecimento dos cinemas de rua e à migração das salas para os shoppings, que são de difícil acesso para grande parte da população brasileira. “Quando o custo de uma ida ao cinema é tão alto, não é surpresa que muitos optem pelo streaming”, observa.

Custos dos ingressos e do consumo durante ou depois da sessão também afastam frequentadores Foto: Felipe Rau/Estadão

Embora existam iniciativas, como sessões com preços reduzidos ou horários promocionais, a realidade é que, dependendo da região onde a pessoa vive, o acesso aos cinemas pode ser complicado. Aproximadamente um terço da população brasileira reside em cidades que não têm museus, e apenas 57% têm acesso a cinemas em seus próprios municípios. Esses dados foram divulgados pelo Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC), pesquisa realizada pelo IBGE com informações coletadas entre 2011 e 2022.

O relatório da Ancine também ressalta que a maior concentração de salas de cinema está no Sudeste, que abriga 52,3% das salas em funcionamento. Nessas regiões, o preço médio dos ingressos é de R$ 20,28, o mais alto do país. Além disso, custos adicionais, como deslocamento e o fato de a experiência envolver mais de uma pessoa, especialmente em grupos ou com a família, tornam a ida ao cinema menos atrativa.

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“Hoje, as pessoas avaliam mais criteriosamente como irão gastar seu tempo e dinheiro, optando por outras formas de entretenimento que, muitas vezes, podem ser mais convenientes e econômicas”, explica Isabel Wittman.

Pelo menos, parece haver uma luz no fim do túnel em relação aos preços elevados dos ingressos. “Estamos trabalhando na construção do novo Plano de Diretrizes e Metas (PDM) para o Audiovisual, que trará uma visão abrangente para o setor nos próximos dez anos”, afirma Cíntia Domit Bittar, conselheira no Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cultura. “Políticas de democratização do acesso ao nosso cinema farão parte desse plano”. Segundo ela, a primeira versão do PDM deve ser anunciada pelo Ministério da Cultura ainda no primeiro semestre de 2025.

Streaming: amigo ou inimigo do cinema?

Quando se discute a dificuldade de atrair os brasileiros de volta às salas de cinema, o streaming é frequentemente apontado como um dos principais culpados.

Segundo os dados da Ancine, o Brasil possui atualmente mais de 60 serviços ativos, que oferecem uma alternativa prática para assistir a filmes sem sair de casa. O grande atrativo é a conveniência: estão disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar, conquistando parte da preferência do público em relação às salas de cinema. Esses serviços vão desde plataformas de vídeo sob demanda tradicionais, como Netflix e Prime Video, até opções gratuitas, como o Pluto TV, e TV linear pela internet, como o Sky+.

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Morris Kachani, gerente executivo do Cinema do Brasil, acredita que as plataformas ajudam a divulgar produções nacionais globalmente, aquecendo o mercado e funcionando como uma vitrine para possíveis coproduções internacionais. “O streaming e o modelo convencional de produção e distribuição se complementam. Um não exclui o outro”, afirma.

Marcelo J. L. Lima também defende os streamings, apontando outro vilão maior na história. “Eu vejo as plataformas de streaming como parceiras dos cinemas. Hoje, a pirataria é o maior concorrente do cinema, pois ela rouba uma parte significativa do público”, aponta.

O cinema ainda estará aqui?

Apesar das dificuldades para atrair os brasileiros às salas de cinema, dois títulos têm se destacado como fenômenos de público aos 45 minutos do segundo tempo de 2024. Curiosamente, ambos são produções brasileiras: a aposta do Brasil ao Oscar, Ainda Estou Aqui, e a sequência O Auto da Compadecida 2. O primeiro já levou mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas, tornando-se a quinta maior bilheteria de 2024, com mais de R$ 62,7 milhões arrecadados, segundo a Comscore. Já o segundo quebrou recordes ao se tornar a maior estreia de um filme nacional desde a pandemia, atraindo mais de 173 mil pessoas para as salas e arrecadando R$ 4 milhões apenas no seu primeiro dia em cartaz, no último 25 de dezembro.

Esses pequenos fenômenos podem ser um sinal de um futuro promissor para o mercado?

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“Infelizmente, acredito que esse sucesso seja um movimento isolado, impulsionado por dois fatores bastante distintos. O primeiro é o timing de criar um ‘filme-evento’, que o público sente que não pode perder, como é o caso de Ainda Estou Aqui”, afirma Thiago Macêdo, sócio e produtor da Filmes de Plástico. “O segundo é o apelo de uma continuação de uma obra querida, como O Auto da Compadecida 2, que desperta uma forte memória afetiva nos espectadores”.

Apesar das diferenças, ambos os casos compartilham um fator crucial: os recursos substanciais investidos na divulgação e o apoio da Globo, que atuou como força motriz. “Enquanto a maioria dos filmes brasileiros conta com orçamentos de distribuição entre R$ 100 e R$ 200 mil, essas duas produções tiveram milhões de reais direcionados para sua promoção”, ele pontua.

“A distribuição do cinema brasileiro continua sendo o maior desafio da nossa indústria. Precisamos seguir lutando para transformar esses momentos de êxito em uma realidade constante, e não em exceções”, destaca Juliana Sakae. Mais otimista, no entanto, ela acredita que o sucesso de Ainda Estou Aqui não é um fenômeno isolado. “Acho que isso sinaliza uma demanda por histórias brasileiras nas salas de cinema, de um público que valoriza essa experiência coletiva”, ressalta.

Como contornar a situação?

Só o tempo dirá se esses fenômenos são movimentos isolados no cinema brasileiro. “Precisamos criar oportunidades para que os filmes tenham sucesso, e isso está diretamente relacionado ao fortalecimento, à criação e à implementação de políticas públicas eficazes para impulsionar o cinema brasileiro”, afirma Cíntia Domit Bittar.

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“Adoraria que as próximas gerações crescessem com memórias de suas idas ao cinema, assim como nós tivemos”, diz Juliana Sakae, que ressalta que, para isso se concretizar, é necessário enxergar o audiovisual como uma ferramenta de formação cultural. Ela enfatiza a importância de incentivar políticas públicas que promovam não apenas a formação de público, mas também a produção regional, para que as pessoas possam se reconhecer nas telas.

Quem também concorda com esse diagnóstico é Morris Kachani. “O Brasil é visto como um parceiro desejável, embora haja um espaço a ser conquistado, e para isso precisamos de um ecossistema industrial focado na coprodução internacional”, ele destaca. “Mas isso envolve políticas públicas eficazes, uma gestão adequada das nossas produções e um ambiente no qual os players globais estabeleçam parcerias com o Brasil. Com todos esses elementos funcionando, nos tornaremos um mercado mais atrativo”.

Apesar dos desafios mencionados, há uma expectativa de que o mercado melhore a partir de 2025, com o setor plenamente recuperado até 2026, segundo o analista Marcelo J.L. Lima.

“Não vejo concorrência entre assistir a um filme em casa e ir ao cinema. É como fazer a nossa própria comida em casa e, ocasionalmente, sair para comer em um restaurante”, acrescenta. “Ambas as experiências são boas, mas ir ao restaurante é um evento especial, algo que não podemos fazer todos os dias, devido ao custo. Por isso, precisamos cozinhar em casa também. Da mesma forma, ir ao cinema é um programa, uma experiência única.”

Marcelo finaliza ressaltando que, acima de tudo, o mercado precisa de bons filmes. “Como aquele prato especial em um restaurante, que nos faz querer gastar um pouco mais. Pelo menos uma vez por mês ou por ano, vale a pena investir nessa experiência”.

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